Dragão Vermelho



THOMAS HARRIS
DRAGÃO VERMELHO


ISBN 972-46-O704-6
(Edição original: ISBN O-440-20615-4)
     Título original: Red Dragon Tradução: J. A. Nogueira Gil
     (D Yazzo Fabrications, Inc. Direitos para Portugal reservados
por Editorial Notícias


Rua da Cruz da Carreira, 4-B 1100 Lisboa
Edição n.º 1-301054-O795


Depósito legal n.' 89 644195 Fotocomposição e fotolitos: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. Impressão e acabamento:
Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
EDITORIAL NOTÍCIAS


Porque a Misericórdia tem um coração humano, A Piedade, um rosto humano, E o Amor, a forma humana do divino, E a Paz, o aspecto humano.


WILLIAM BLAKE, Cantos de Inocência, «A Imagem Divina».


A Crueldade tem um Coração Humano e a Inveja, um Rosto Humano,
o Terror, a Forma Humana do Divino e o Segredo, o Aspecto
Humano.
  Aspecto Humano é um Metal forjado,


  Forma Humana, uma Forja acesa,
Rosto Humano, uma Fornalha fechada, Coração Humano, a sua Garganta sequiosa.




WILLIAM BLAKE, Cantos de Experiência, «Uma Imagem Divina»*.
* Depois da morte de Blake, este poema foi encontrado
juntamente com as gravuras de Cantos de Experiência. Só apareceu mais tarde em edições póstumas.


CAPÍTULO  1
     Will Graham instalou Crawford numa mesa de piquenique, entre a casa e o oceano, e serviu-lhe um copo de chá gelado.
Jack Crawford olhou com agrado -a velha casa,
distinguindo, na claridade do dia, o prateado do sal do mar que salpicava as madeiras da construção.
- Devia ter-te apanhado em Marathon, quando saíste do
escritório - disse. - Não vais querer falar aqui desse assunto.
     - Não me apetece falar disso nem aqui nem em sítio nenhum, Jack, mas se achas que é necessário, pois seja. Só te peço que não mostres fotografias. Se as trouxeste, deixa-as na pasta. Molly e Willy não tardam aí.
- O que é que sabes ao certo?
     - O que foi publicado no Miami Herald e no Times - disse Graham. - Duas famílias massacradas nas suas próprias casas no intervalo de um mês. Birmingham e Atlanta. As circunstâncias foram semelhantes.


- Não foram semelhantes. Foram as mesmas.
- Até agora, quantas confissões espontâneas?
- Oitenta e seis, quando telefonei esta tarde - disse
Crawford. - Lunáticos. Nenhum deles conhecia os detalhes. O assassino parte os espelhos e serve-se dos fragmentos. Nenhum deles sabia deste pormenor.
- Que mais é que não disseste aos jornais?
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     - É louro, dextro e realmente forte, calça o quarenta e três. Sabe dar nós de marinheiro. Não há impressões digitais. Usa luvas de cirurgia.
- Já disseste isso publicamente.
- Não se sente muito à vontade com fechaduras - disse
Crawford. - Na última vez, usou um diamante corta-vidro e uma ventosa para entrar na casa. Ah, e o seu sangue é AB positivo.
- Alguém o feriu?
     - Tanto quanto se sabe, julgo que não. Foi caracterizado pelo sêmen e saliva. - Crawfard olhou na direcção do mar, que
parecia um espelho. - WilI, há uma coisa que preciso de saber. Leste nos jornais e o segundo crime foi comentado na TV. Chegaste a pensar em fazer-me uma chamada?
- Não.
- Por que não?
     - Porque sobre o primeiro, em Birmingham, não havia muitos detalhes. Podia ter sido qualquer coisa - vingança, um parente, eu sei lá!
- Mas depois do segundo, soubeste quem era?
     - Soube. Um psicopata. Não te telefonei porque não me apeteceu. Sei quem é que já tens a trabalhar nisto. Arranjaste os melhores especialistas de laboratório, sem contar com o Heimlich, em Harvard, e o Bloorn, na Universidade de Chicago. - E tenho-te aqui a reparar a merda dos barcos a motor.
- Estou convencido de que eu não te servia para nada,
Jack. Deixei de me ocupar desses assuntos.
- A sério? Os dois últimos que se apanharam, foste
exactamente tu quem lhes deitou a mão, não foste?
- Limitei-me apenas a fazer aquilo que tu e os outros
também são capazes de fazer.
     - Isso não é totalmente verdade, Will. Tu pensas de modo especial.
     - Estou convencido de que já houve histórias a mais sobre o modo como penso.
- Fizeste algumas deduções que ficaram sempre por explicar.
- As provas estavam lá - disse Graham.
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- Certo. Havia tantas quantas se quisesse. Montes delas... depois de tudo ter acontecido. No início havia tão pouca coisa que praticamente nem sequer chegava para uma acusação.
     - Tens uma boa equipa, Jack. Estou convencido de que não te servia de grande coisa. E além disso vim para aqui para esquecer isso tudo.
- Eu sei. Da última vez ficaste magoado. Agora já me
pareces em forma.
     E estou em forma, mas decidi parar, nem sei bem explicar porquê.
- Compreendia perfeitamente que não fosses capaz de
voltar a olhar ...
- Não, não é isso. É certo que é incómodo, mas é sempre
possível continuar a trabalhar depois de eles terem morrido. A pior parte é o hospital e os interrogatórios. É preciso esquecer o que se vê e continuar a pensar. Presentemente não me sinto capaz de uma coisa dessas. Conseguiria forçar-me a
ver, mas seria incapaz de reflectir.
- Já morreram todos, Will - disse Crawford suavemente.
     Jack Crawford. reencontrava no modo de falar de Graham o  seu próprio ritmo, a sua própria sintaxe. Já ouvira Graham fazer o mesmo em relação a outras pessoas. Acontecia muitas vezes,
numa conversa importante, Graham adquirir os tiques de linguagem do seu interlocutor. Crawford chegara a acreditar que o fazia
de propósito, que se tratava de um truque pa ra conservar um determinado ritmo, mas chegara rapidamente à conclusão de que se tratava de um fenômeno absolutamente involuntário e que Graham tentara evitá-lo, embora sem êxito.
     Crawford meteu dois dedos no bolso do casaco. Tirou duas fotografias, que colocou em cima da mesa.
- Todos mortos.
Graham fitou-o nos olhos antes de pegar nas fotografias.
     Eram instantâneos: uma mulher, três crianças e um pato, junto a um lago com utensílios para um piquenique. Uma família agrupada por detrás de um bolo.
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     Depois de alguns segundos, voltou a pousar as fotografias. Colocou uma sobre a outra antes de se voltar para a praia, onde uma criança, agachada, procurava qualquer coisa na areia. Uma mulher, com as mãos nas ancas, mantinha-se de pé, observando o ~pequenito, enquanto as ondas se vinham desfazer junto aos seus pés. Inclinou-se para sacudir o


cabelo molhado que se lhe colava aos ombros.
     Graham, ignorando o seu convidado, observou Molly e o filho ,por tanto tempo quanto o que demorara a olhar para as fotografias.
     Crawford sentia-se contente, mas procurava não o demonstrar, quase de modo idêntico ao cuidado que tivera na escolha do local daquela conversa. Estava convencido de que conquistara Graham. Mas era preciso deixá-lo amadurecer.
Três cães excepcionalmente feios vagueavam por perto e vieram deitar-se próximo da mesa.


- Meu Deus - exclamou Crawford.
- Fica calmo, são só cães, acho - explicou Graham. – Há muita gente que vem abandonar cachorrinhos aqui por perto. Os mais bonitos ainda os consigo dar. Os outros ficam por aí e vão crescendo ao Deus dará.
- Estão demasiado gordos, não estão?
- Molly é uma pateta com estes vagabundos.
- Levas aqui uma rica vida, WilI, com Molly e o garoto.
Que idade tem ele?
- Onze.
- Está óptimo. Vai ser mais alto que tu.
Graham concordou com um aceno.
- O pai era -mais alto do que eu. Sim, sinto-me bem aqui.
     - A minha vontade era ter trazido a PhyIlis comigo a Florida ... Arranjar um cantinho para a minha reforma e deixar de viver como um homem das cavernas. Ela diz que os amigos dela estão todos em Arlington.
     - Era minha intenção agradecer-lhe os livros que me levou ao hospital, mas nunca consegui arranjar tempo. Agradece-lhe por mim.
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- Fica descansado. -
     Duas pequenas aves de cores brilhantes pousaram na mesa, à procura de restos de doce. Crawford ficou a vê-las saltitar, até que levantaram voo e desapareceram.
     - WilI, este bandalho parece que se encontra na mesma fase que a lua. Assassinou os Jacobi em Birmingliam num sábado à noite, 28 de Junho, dia de lua cheia. Assassinou os Leeds na noite de anteontem, 26 de Julho. Um dia a menos para completar um mês lunar. Deste modo, se tivermos sorte, resta-nos pouco mais de três semanas antes que volte a fazer a mesma gracinha.
- Admirava-me muito que fosses capaz de ficar aqui em
Keys à espera de leres ~ reportagem do próximo crime no-teu Miami Herald. Porra, não sou o papa, não estou aqui para te dizer o que tens de fazer, mas há uma coisa que quero saber Wili: respeitas a minha opinião?
- Bem sabes que sim.
- Estou convencido de que temos hipóteses de o apanhar
mais rapidamente se trabalhares connosco. Anda, WilI, mexe-me esse cu e vem dar-nos uma mão. Vai a Atlanta e Birmingam e observa à tua vontade. A seguir vai ter comigo a Washington. Faz um esforço, é a única coisa que te peço.
Graham não respondeu.
     Crawford esperou que algumas ondas se viessem desfazer na praia. Então, levantou-se, colocando o casaco no ombro.
- Voltamos a falar depois de jantar.
- Fica e comes connosco.


Crawfard abanou a cabeça.
     - Venho mais tarde. Deve haver recados para mim no Holiday Inn e tenho de fazer uma série de chamadas. De qualquer modo, agradece à Molly da minha parte.


O carro de aluguer de Crawford levantou uma camada de
poeira fina que assentou lentamente nos arbustos de ambos os lados da estrada de terra batida.
     Graham voltou para junto da mesa. Receava que esta fosse a sua última recordação de Sugarloaf Key - gelo a derreter-se em dois copos de chá, guardanapos de papel que a brisa fazia esvoa-
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çar da mesa de madeira vermelha e Molly e Willy ao longe na praia.
     Pôr-do-sol em Sugarloaf: garças-reais imóveis e a bola de fogo enorme.
     Will Graham e Molly Foster Graham estavam sentados num tronco de árvore que dera à costa, os rostos iluminados pelo alaranjado do pôr-do-sol, enquanto nas suas costas se iam formando sombras violentas. Ela pegou-lhe na mão.
- Crawford parou na boutique para falar comigo antes de
vir para aqui - disse-lhe ela. - Perguntou-me qual era o caminho. Tentei telefonar-te. De vez em quando podias dar-te ao incómodo de atender o telefone. Vimos o carro quando chegámos a casa e demos a volta pela praia.
- Que mais é que ele te perguntou?
- Como é que estavas.
- E que é que lhe respondeste?
     - Disse-lhe que estavas em forma e que devia deixar-te em paz de uma vez por todas. Que é que ele quer agora?
- Que encontre provas. Sou um especialista forense,
Molly, está escrito no meu diploma.
     - O teu diploma? Serviste-te dele para tapar uma frincha do tecto. - Sentou-se às cavalitas no tronco de árvore. - Se sentisses falta da tua vida anterior e do teu trabalho, falavas nisso, mas nunca o fizeste. Estás mais aberto, mais descontraído ... e eu gosto disso.
- Temos passado um tempo óptimo, não temos?
O modo como ela pestanejou deu-lhe a entender que podia
ter dito qualquer coisa mais apropriada. Mas ela continuou sem lhe dar tempo de interromper.
-, Só te fez mal teres trabalhado para o Crawfard. Quem


ouvir até é capaz de ficar convencido de que não tem mais ninguém. Se lhe apetecer pode requisitar o governo inteiro. Será que não pode deixar-nos em paz de uma vez por todas?
- Crawford não te contou que foi o meu supervisor nas
duas vezes em que deixei a Academia do FBI para intervir em casos
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reais? Esses dois casos foram os únicos que lhe apareceram em toda a sua vida profissional. E olha que o Jack já trabalha há imenso tempo. Agora surgiu um terceiro caso. Esta espécie de psicopata é muito rara. Ele sabe que eu tenho ... experiência.
- Não é preciso que mo digas - respondeu Molly. A camisa
estava desapertada e podia ver a cicatriz que lhe atravessava o abdômen. Saliente, da largura de um dedo, em alguns pontos talvez mais, nunca ficava bronzeada com o sol. Subia-lhe em diagonal desde a anca esquerda e terminava no lado contrário, junto à caixa torácica.
O Dr. Hannibal Lecter fizera-lhe aquilo com uma faca de
sapateiro. Acontecera um ano antes de ter encontrado Molly e por pouco fora a causa da sua morte. O Dr. Lecter, conhecido pelos jornais como «Hannibal, o Canibal», fora o segundo psicopata que Graham apanhara.
     Quando finalmente saiu do hospital, Graham demitiu-se do FBI, deixou Washington, e arranjou trabalho como mecânico diesel na doca de Marathon, em Florida Keys. Era um trabalho que conhecia bem. Viveu numa caravana estacionada nas docas até que Molly veio instalar-se numa casa velha de Sugarloaf Key.
     Foi a vez de Graham se sentar às cavalitas no tronco, ao mesmo tempo que segurava as mãos de Molly. Os pés dela deslizaram debaixo dos seus.
- Ouve uma coisa, Molly, Crawfard acha que tenho uma
habilidade especial para lidar com monstros. Para ele chega a ser uma superstição.
- Acreditas nisso?
Graham olhou para três pelicanos que voavam em linha
sobre a rebentação.
     - Molly, um psicopata inteligente - em especial um sádico - é extremamente difícil de apanhar por várias razSes. Em primeiro lugar, não se encontra nenhum móbil compreensível, o que obriga que seja uma pista que é preciso pôr de lado. Na maioria das vezes é impossível conseguir-se qualquer coisa dos informadores. Não te esqueças de que a maioria das detenções que se efectuam é só porque alguém deu com a língua nos dentes,
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e não porque houve um trabalho sério' de investigação. No caso deste tipo não existem informadores. Até pode acontecer que o assassino não saiba o que está a fazer. A única possibilidade que existe é a de se extrapolar a partir dos indícios que formos obtendo, por insignificantes que sejam. Somos obrigados a tentar reconstruir a sua actuação e a procurar encontrar padrSes de comportamento.
     - Antes de o seguir e de o encontrar - disse Molly. !Tenho medo de que te lances na pista desse maníaco, ou lá que raio lhe queiras chamar. Tenho medo de que te faça o que o último te fez. É isso, pronto!
     - Não penses nisso, Molly. Ele nunca conseguirá ver-me ou saber o meu nome. É a polícia que tem de o prender, se conseguirem encontrá-lo, e não eu. Crawford. precisa apenas da minha opinião.
     Molly via a luz avermelhada do sol reflectir-se na superfície espelhada do mar. Uma formação de cirros flutuava
no horizonte.
     Graham adorava a maneira como ela voltava a cabeça, mostrando-lhe descuidadamente o seu pior perfil. Podia ver o pulsar da veia na garganta e de repente lembrou-se de uma forma intensa do gosto do sal na sua pele. Engoliu a saliva e acrescentou:
- Que é que posso fazer?
     - Aquilo que já decidiste. Se ficas aqui e há mais assassínios, o mais certo é este lugar se tornar insuportável para ti. Pensarás sempre nessas histórias de lua cheia. E afinal para que é que pediste a minha opinião se já tinhas decidido?
- E se eu te pedisse a sério, o que é que respondias?
- Que ficasses aqui comigo. Comigo, percebes, e com o
Willy. Era capaz de fazer sei lá o quê se soubesse que resultava. Sei que esperas de mim que não chore e que me comporte normalmente. Se as coisas não correrem pelo melhor, terei a satisfação de saber que fizeste aquilo que estava certo. E tudo isto não passará de um momento fugidio. Depois só me restará regressar a casa e ligar um dos lados do cobertor eléctrico.
- Hei-de manter-me à distância.
- Sabes bem que não. Achas que sou egoísta?
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- Não me importo.
     - Nem eu. Sinto-me bem aqui; é do prazer e da doçura que aqui encontro. E, quanto a ti, é graças a tudo aquilo que te aconteceu anteriormente que tens consciência disso, que o aprecias.
Ele acenou com a cabeça.
- Haja o que houver, não quero perder isto - disse ela.
- Nem eu. E não vamos perder.
A escuridão caiu rapidamente e Júpiter apareceu a
sudoeste no horizonte.
     Regressaram a casa, atrás da qual se erguia, no céu, uma lua corcunda. Para lá da rebentação, os peixes debatiam-se para escapar à morte.
     Crawfard regressou depois de jantar. Tirara o casaco e a gravata e enrolara as mangas da camisa para se sentir mais à vontade, Molly achava que os braços de Crawford, gordos e esbranquiçados, eram repugnantes. Parecia-lhe um estupor de um macaco diabolicamente manhoso. Serviu-lhe o café junto ao ventilador instalado na varanda, onde ele se encontrava sentado a refrescar-se, e ficou a fazer-lhe companhia enquanto Graham e Willy foram dar de comer aos cães. Não disse nada. Os insectos nocturnos esbarravam nos mosquiteiros.
- Parece com bom aspecto, Molly - disse Crawford. Tanto
um como o outro estão com muito bom aspecto - elegantes e bronzeados.
- Diga o que disser, vai levá-lo consigo, não vai?
     - É verdade, tem de ser. Tenho de o fazer. Mas juro-lhe, por Deus, Molly, que hei-de tornar as coisas para ele o mais fáceis que me seja possível. Está modificado. Foi óptimo vocês terem-se casado.
     - Tem melhorado pouco a pouco. Já não tem pesadelos como antes. Houve uma altura em que tinha uma obcecação pelos cães. Agora limita-se a tomar conta deles e deixou de falar no assunto a toda a hora. Jack, você é amigo dele. Por que é que não o pode deixar em paz?
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- Simplesmente porque ele é o melhor. Porque não pensa
como toda a gente e não tem um espírito de rotina.
     - Will está convencido de que precisa dele para encontrar indícios.
- É verdade. Nesse domínio ninguém o ultrapassa. Mas há
também o outro aspecto do trabalho, aquele de que ele não gosta: o trabalho de imaginação, de extrapolação.
     - Estou convencida de que também não gostava de o fazer. Jack, prometa-me uma coisa. Prometa-me que o impede de se embrenhar demasiado nessa história. Tenho medo de que morra se tiver de lutar.
- Não vai ter de lutar, isso posso garantir-lhe.
Quando Graham terminou o trabalho com os cães, Molly
ajudou-o a fazer a mala.
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CAPÍTULO  2
     Will Graham passou lentamente diante da casa onde a família de Charles Leeds vivera e morrera. Não havia qualquer luz nas janelas. No jardim ficara acesa uma única lâmpada. Parou a dois quarteirSes de distância e regressou a'pé, trazendo debaixo do braço um dossier com o relatório dos detectives da polícia de Atlanta. A noite estava amena.
     Graham insistira em vir sozinho. Se houvesse mais alguém na casa não conseguia concentrar-se - fora a explicação que dera a Crawford. No entanto, havia uma outra razão, essa, de carácter particular: não sabia muito bem como é que iria reagir e não queria ter ninguém a observar as suas reacções. Conseguira aguentar o choque da morgue.
     O edifício em tijolo de dois andares encontrava-se levemente recuado em relação à rua, no meio de um terreno arborizado. Graham deixou-se ficar imenso tempo sob as árvores a observá-lo. Precisava de recuperar a sua calma interior. Na sua mente, um pêndulo de prata oscilava na noite. Esperou que o pêndulo se imobilizasse.
Alguns vizinhos passaram de carro, olhando furtivamente
para a casa antes de desviarem o olhar. Uma casa onde se cometeu um assassínio é sempre um assunto penoso para os vizinhos, como se se tratasse do rosto de alguém que os tivesse traído. Só os forasteiros e as crianças eram capazes de a olhar de frente.
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     As persianas estavam subidas. Tanto melhor. Significava que não viera ninguém da família. Os familiares baixam sempre as persianas.
     Deu lentamente a volta à casa sem acender a lanterna. Parou duas vezes para escutar. A polícia de Atlanta estava ao corrente da sua visita, mas não se passava o mesmo com os vizinhos. Podiam reagir de modo violento e chegar a disparar sobre ele.
     Olhando através de uma janela das traseiras conseguiu ver os móveis que se encontravam dentro de casa, recortando-se em sombras chinesas, iluminados pela luz do candeeiro do jardim da frente. O aroma de jasmim que pairava no ar tornava o ambiente pesado. Uma varanda envidraçada ocupava a maior


parte das traseiras da casa. A porta da varanda fora selada pela polícia de Atlanta. Graham quebrou o selo e entrou.
Na porta que dava da varanda para a cozinha, a polícia
substituíra os vidros partidos por contraplacado. Acendendo a lanterna, abriu a porta com a chave que os polícias lhe tinham dado. Queria ligar as luzes, usar o seu distintivo reluzente e fazer barulho para justificar a sua presença naquela casa silenciosa onde cinco pessoas haviam sido assassinadas. Não fez nada disso. Dirigiu-se para a cozinha mergulhada na
escuridão e sentou-se à mesa.
     Duas lâmpadas piloto do equipamento de cozinha projectavam na escuridão reflexos azulados. Sentia-se no ar o cheiro a maçãs e a verniz para móveis.
O termostato disparou e o ar condicionado começou a
trabalhar. Graham sobressaltou-se com o ruído inesperado, sentindo um laivo de medo, uma sensação que ele conhecia bem, mas depressa se refez, decidido a continuar.
     Conseguia ver e ouvir melhor quando sentia medo, mas em contrapartida deixava de falar controladamente, chegando por vezes a mostrar-se grosseiro. Mas ali não havia ninguém com quem falar, ninguém a quem pudesse insultar.
A loucura entrara naquela casa pela porta da cozinha,
calçando sapatos tamanho quarenta e três. Sentado na escuridão, Graham farejava a loucura como um cão-polícia fareja uma camisa.
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Passara praticamente todo o dia e o princípio da noite
a estudar o relatório dos detectives dos Homicídios de Atlanta. Lembrou-se.de que a luz do exaustor sobre o fogão se encontrava acesa na altura em que a polícia chegou. Voltou a ligá-la.
     Havia dois posters na parede, um de cada lado do fogão. Num deles estava-escrito: «Os beijos são efémeros mas os bons petiscos são eternos» e no outro: «É sempre na cozinha que os nossos amigos se reencontram porque é aí que ouvem bater, o coração da casa.»
     Graham olhou para o relógio. Onze e meia da noite. Segundo o médico legista, as mortes teriam ocorrido entre as onze da noit( ,e a uma da manhã.
A entrada em primeiro lugar. Tentou imaginar como é que
as coisas se teriam passado ...
O lunático começou por arrombar a porta da varanda. Na
escuridão tirou qualquer coisa do bolso: uma ventosa, talvez a base de um afia-lápis de secretária.
     Agachado contra a parte inferior de madeira da porta da cozinha, o lunático ergueu a cabeça para espreitar pelo
vidro. Humedeceu a ventosa com a língua, fez pressão contra o vidro e premiu a alavanca para a fixar. Um pequeno corta-vidros de diamante que lhe permitia cortar um círculo de vidro, estava preso à ventosa por um fio.
Um leve rangido do diamante e uma pancada seca para
partir o vidro. Uma mão para dar a pancada e a outra para segurar a ventosa. O vidro não deve cair. A peça de vidro que cortou tem uma forma ligeiramente oval porque o fio se embaraçou no topo da ventosa à medida que ia cortando. Apenas um leve ruído quando retira o bocado de vidro e o coloca no chão. Pouco se importa por ter deixado no vidro saliva do tipo AB positivo.
     A mão enluvada introduz-se pelo buraco e encontra a fechadura. A porta abre-se sem qualquer ruído. Já está dentro de casa. A luz do exaustor permite-lhe distinguir os objectos naquela cozinha desconhecida. O ambiente está agradavelmente fresco.
     Will Graham engoliu duas pastilhas contra a azia, sentindo-se irritado com o ruído produzido pelo celofane que as continha.
Atravessou a sala de estar mantendo a lanterna afastada de si, um hábito de longa data. Estudara conscienciosamente a planta do andar, mas mesmo assim enganou-se no caminho antes de alcançar as escadas. Não rangeram sob o seu peso.
Encontrava-se agora à porta do quarto principal.
Conseguia distinguir as coisas sem a ajuda da lanterna. Numa mesinha de cabeceira, um relógio digital projectava as horas
no tecto e uma luz alaranjada de vigia encontrava-se acesa perto da casa de banho. O cheiro a cobre metálico do sangue era ainda bastante forte.
     Olhos acostumados à escuridão conseguiam distinguir as coisas de modo razoável. O lunático conseguira distinguir o Sr. Leeds da esposa. Vira o suficiente para atravessar a sala, agarrar Leeds pelos cabelos e cortar-lhe a garganta. E a seguir? De volta ao interruptor de parede, um pequeno cumprimento à Sr a Leeds antes do tiro que iria mutilá-la?
Graham acendeu as luzes e as manchas de sangue nas
paredes, no colchão e no soalho saltaram-lhe aos olhos. O ar ainda estava cheio de gritos lancinantes. Sentiu-se desfalecer perante o ruído deste quarto silencioso sujo de manchas sombrias.
Graham sentou-se no chão para tentar acalmar-se. Calma,
tem calma, mantém-te calmo.
     O número e diversidade das manchas de sangue fora um enigma para os detectives de Atlanta que tentaram reconstituir o crime. Todas as vítimas tinham sido encontradas nos próprios leitos, o que não era consistente com a localização das manchas.
     Inicialmente pensaram que Charles Leeds fora agredido no quarto da filha e em seguida arrastado para o seu quarto. Uma análise mais cuidada das manchas obrigara-os a reconsiderar.
Ainda não fora possível determinar os movimentos do
assassino em todos os quartos.
Mas agora, com a ajuda do relatório da autópsia e do
laboratório, Will Graham começava a ver como as coisas se tinham passado.
O assassino cortara a garganta de Charles Leeds, que
dormia ao lado da mulher, e voltara ao interruptor de parede para acender
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a luz - no interruptor foram encontrados cabelos de Leeds e vestígios de brilhantina, deixados por uma luva de borracha. Disparou sobre a Sr.' Leeds na altura em que esta se erguia da cama e em seguida dirigiu-se para os quartos das crianças.
Apesar do ferimento, Leeds levantou-se e tentou fazer-lhe
frente para proteger as crianças, embora sangrasse abundantemente, indício de hemorragia arterial. Foi empurrado, caiu e morreu junto da filha.
     Um dos rapazes foi abatido a tiro na cama. O outro também foi encontrado deitado, mas tinha cotão nos cabelos. A polícia concluiu que devia estar debaixo da cama e que foi arrastado para fora antes de ser morto igualmente a tiro.
     Quando já se encontravam todos mortos, talvez com excepção da Sr a Leeds, foi a altura de partir os espelhos, de escolher os fragmentos e de consagrar uma atenção especial à Sr. Leeds.
     Graham recebera duplicados de todos os relatórios de autópsia. O da Sr.' Leeds especificava que a bala entrara à direita do umbigo, indo alojar-se na coluna vertebral por altura das vértebras lombares, mas que morrera estrangulada.
O aumento dos níveis de serotonina e de histamina ao
nível da ferida da bala indicava que sobrevivera pelo menos cinco miinutos depois do tiro. O nível de histamina era mais elevado do que o de serotonina, o que significava que não resistira mais de quinze minutos. A maior parte dos outros ferimentos teriam sido feitos depois de morta, embora não houvesse qualquer certeza.
     Se os outros ferimentos eram posteriores à sua morte, que raio é que o assassino estivera a fazer durante o espaço de


tempo em que a Sr a Leeds agonizava?, perguntava Graham a si próprio. Não havia dúvida de que lutara com Leeds e assassinara os outros membros da família, mas tudo isso não demorara mais de um minuto. Partiu os espelhos, e depois?
Os detectives de Atlanta eram muito minuciosos. Tinham
medido e fotografado tudo de uma forma exaustiva, aspirado toda a área, inspeccionado os cantos mais escondidos e investigado os próprios sifSes da casa de banho. Mesmo assim, Graham voltava a examinar toda a situação.
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As fotografias da polícia e os contornos marcados nos
colchSes mostravam a Graham onde os corpos tinham sido encontrados. Vários indícios - por exemplo os vestígios de nitrato nas roupas de cama, no caso dos ferimentos a tiro ­indicavam que se encontravam aproximadamente na mesma posição na altura em que haviam falecido.
     Mas a profusão de manchas de sangue e de marcas encontradas no tapete do patamar permaneciam sem qualquer explicação. Um dos detectives apresentara uma teoria segundo a qual algumas das vítimas teriam tentado rastejar para escaparem ao assassino. Graham não acreditava nisso. Era evidente que o assassino os deslocara depois de terem morrido para os voltar a colocar no local onde foram encontrados.
Aquilo que ele fizera com a Sr a Leeds era óbvio. E a
respeito dos outros? Não lhes tinha infligido as mesmas mutilações, como fizera com a Sr a Leeds. As crianças haviam sido apenas atingidas com um tiro na cabeça. Charles Leeds morrera da hemorragia e do sangue que engolira. A única marca adicional que se encontrara nele provinha de ter sido amarrado ao nível do peito, facto, muito possivelmente, posterior à sua morte. Sendo assim, que é que o assassino fizera com eles depois de terem morrido?
Graham tirou do dossier as-fotografias da polícia, os
relatórios do laboratório sobre manchas de sangue e de líquidos orgânicos individuais encontrados no quarto e um estudo comparativo permitindo calcular as projecções do sangue.
     Estudou os quatro com atenção, esforçando-se por fazer corresponder os ferimentos às manchas e trabalhando no sentido inverso. Assinalou cada mancha num esboço à escala do quarto principal, usando os diagramas comparativos para calcular a direcção e velocidade das projecções. Procurava deste modo determinar as posições dos corpos nos diferentes instantes do drama.
Uma fila de três manchas oblíquas, precisamente num dos
cantos da parede do quarto. No tapete, três manchas muito ténues. Por cima da cabeceira da cama, do lado de onde dormia Charles Leeds, a parede encontrava-se manchada e havia marcas de sangue nos prumos. O diagrama de Graham começava a parecer-se
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como um daqueles desenhos em que é preciso unir os pontos
para formar uma imagem. Olhou-o com atenção, voltou a olhar para o quarto e de novo para o esquema, até começar a sentir uma dor de cabeça insuportável.
     Foi ao quarto de banho, tomou os seus dois últimos comprimidos Bufferin e em seguida fez correr a água na mão em concha. Molhou o rosto e limpou-se à fralda da camisa. A água escorreu para o chão. Esquecera-se de que o sifão fora desligado para analisarem o filtro. Se não fosse esse detalhe, o quarto de banho encontrava-se intacto, com excepção do espelho partido e do pó vermelho de impressões digitais, conhecido por «sangue de dragão». Escovas de dentes, cremes
para o rosto, máquina de barbear, encontrava-se tudo nos seus lugares.
     Dir-se-ia que a família ainda continuava a utilizar o quarto de banho: os collants da Sr a Leeds pendurados no toalheiro, onde ela os deixara a secar. Reparou que cortava uma das pernas de um par, quando tinha uma malha caída - podia usar dois pares ao mesmo tempo, cada um deles só com uma perna, conseguindo poupar dinheiro. Este tipo de pequena economia da Sna Leeds impressionou-o; Molly agia de modo idêntico.
     Graham passou por uma das janelas para se instalar sobre a cobertura de madeira da varanda. Abraçando os joelhos, a camisa húmida colada às costas, respirou fundo tentando libertar-se do cheiro de matadouro que lhe invadira o nariz.
As luzes de Atlanta iluminavam a noite, tomando difícil
avistar as estrelas. Em Keys devia estar uma noite bonita. Podia estar naquele momento a observar as estrelas cadentes na companhia de Molly e Willy, procurando ouvir o silvo - estavam todos de acordo sobre este ponto - que fariam ao cair. Os meteoros de Delta Aquário encontravam-se no seu apogeu e isto era uma coisa que Willy não queria perder.
     Sentiu de novo um arrepio e fungou. Não era altura para pensar em Molly. Só podia servir para o distrair. E além disso não era de muito bom gosto.
     Esse era exactamente o problema de Graham: nem sempre os seus pensamentos eram de muito bom gosto. Não existia uma
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separação real no seu espírito. Tudo aquilo que via e que aprendia contaminava todos os seus outros conhecimentos. Por vezes, estas misturas eram difíceis de suportar, mas nada conseguia fazer para as evitar. Todos os seus valores adquiridos de decência e de conveniência se rebelavam diante destas associações de ideias ou assustavam-se com os seus sonhos, e no ambiente fechado da sua mente não existia refúgio possível para aquilo que ele amava. As associações faziam-se à velocidade da luz, enquanto os juízos de valor preferiam o passo comedido da ladainha. Seria impossível que alguma vez impusessem e orientassem a sua reflexão.
     A sua própria mentalidade parecia-lhe grotesca e útil ao mesmo tempo, como se fosse uma cadeira tosca, mas não conseguia reagir contra isso.
     Graham apagou a luz e atravessou a cozinha. Num dos cantos da varanda a lanterna iluminou uma bicicleta e uma cama para um cão feita num cesto de vime. No pátio havia uma casota e perto dos degraus ficara abandonada uma gamela.
Tudo demonstrava que os Leeds haviam sido surpreendidos
durante o sono.
Segurando a lanterna entre o queixo e o peito, escreveu
uma nota: «Jack, onde estava o cão?»
     Graham regressou ao hotel. Teve de se concentrar na condução embora o tráfico fosse praticamente nulo às quatro e meia da madrugada. A cabeça ainda lhe doía e tentou encontrar uma farmácia que estivesse aberta toda a noite.
     Encontrou uma em Peachtree. Um segurança de aspecto pouco cuidado dormitava próximo da porta. O empregado da farmácia, envergando uma bata desbotada e cheia de caspa nos ombros, vendeu a Graharn os comprimidos Bufférin que este pediu. A iluminação da farmácia feria a vista. Graham detestava farmacêuticos jovens. Achava-lhes na maioria das vezes um ar convencido e desconfiava de que em casa deviam ser desagradáveis.
- Mais alguma coisa? ~ perguntou o farmacêutico, com os
dedos pousados nas teclas da caixa registadora. - Mais alguma coisa?
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Os escritórios do FBI de Atlanta tinham-lhe reservado
quarto num hotel absurdo, perto do novo centro comercial de Peachtree. Os elevadores eram envidraçados, em forma de vagem, para que não se esquecessem de que se encontravam mesmo na cidade.
     Graham subiu no elevador juntamente com dois indivíduos cheios de autocolantes, participantes numa convenção qualquer. Agarrados à barra do elevador, observavam o átrio do hotel.
     - Olha para aquela maravilha junto à recepção, é a Wilma e os outros que estão agora a chegar - disse o mais corpulento. Porra, como eu gostava de dar uma dentada naquilo. - F... até que ela deitasse sangue pelo nariz - disse o outro. O medo, a violência, a cólera.
- A propósito, sabes por que é que uma mulher tem pernas?
- Não, porquê?
- Para não deixar um rasto como um caracol.
As portas do elevador abriram-se.
     - É aqui? É, chegámos - disse o mais corpulento. Ao sair foi de encontro à parede.
Olha, olha, afinal não estás melhor do que eu - disse o outro.
     Ao chegar ao quarto, Graham colocou o dossier em cima da cómoda. Mas arrependeu-se e guardou-o numa gaveta onde não o pudesse ver. Estava farto de todos aqueles mortos de grandes olhos arregalados. Apeteceu-lhe telefonar a Molly, mas ainda era muito cedo.
Estava prevista uma reunião às oito da manhã na sede da
polícia de Atlanta. Pouco tinha para lhes dizer.
     Precisava de tentar dormir. A sua mente era semelhante a uma casa onde toda a gente discutia e em que a luta começava logo no hall de entrada. Com uma sensação incómoda de vazio e de entorpecimento, bebeu dois dedos de whisky no copo dos dentes antes de se deitar. O peso da escuridão oprimia-o. Acendeu a luz da casa de banho e voltou a deitar-se. Tentou imaginar Molly na casa de banho a escovar o cabelo.
Ressoavam-lhe na mente passagens do relatório de autópsia
e era a sua própria voz que ele ouvia, embora nunca o tivesse lido
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em voz alta: «[ ... (as fezes eram formadas (...) um vestígio de
talco na parte inferior da perna direita. Fractura da parede média da órbita devido a inserção de um fragmento de espelho [ ... ]»
     Graham fez um esforço para pensar na praia de Sugarloaf Key e ouvir o ruído das ondas. Imaginou a sua oficina e pensou no escoamento da elepsidra que ele e Willy estavam a construir. Trauteou em surdina Whisky River e a seguir procurou cantar o Black Mountain Rag do princípio ao fim. A música de Molly ... Não tinha problemas com a parte de guitarra de Doc Watson, mas perdia-se sempre no solo de violão. Molly tentava ensinar-lhe sapateado no pátio da casa, fazia troça dele ... acabou por adormecer.
     Acordou menos de uma hora depois, banhado em suor: a silhueta da outra almofada recortava-se contra a luz da casa de banho e era a Sr.' Leeds que jazia a seu lado, mordida, despedaçada, os olhos vidrados, as têmporas e as orelhas cobertas de manchas de sangue, dando a ideia das hastes de uns óculos. Não conseguia olhá-la de frente. Com um uivo de sirene a ecoar-lhe na cabeça, estendeu a mão e só encontrou os lençóis.
     Experimentou um alívio imediato. Levantou-se, o coração a
pulsar desordenadamente, e vestiu uma camisola lavada antes de atirar para a banheira aquela que trazia vestida. Não foi capaz de se mudar para o lado seco da cama. Preferiu estender uma toalha sobre os lençóis empapados em suor e voltar a deitar-se, as costas apoiadas na cabeceira da cama, um copo na mão. De uma só vez engoliu quase que um terço do conteúdo.
Procurou encontrar qualquer coisa em que pudesse pensar,
não importava o quê. A farmácia onde comprara os comprimidos. Isso dava. Talvez porque tivesse sido a única coisa em todo o dia que não estivera relacionada com mortes.
     Lembrou-se das velhas boticas e das suas fontes de soda. Nos seus tempos de miúdo sempre lhes encontrara um ar esquisito. Quando se entra num deles, o primeiro pensamento que vem à ideia é o de comprar preservativos, mesmo que não se tenha necessidade. Havia artigos nas prateleiras que não se encontravam há muito noutros sítios.
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Na farmácia onde comprara o Bufferin, os contraceptivos
com as suas embalagens ilustradas encontravam-se num mostruário em plástico brilhante, pendurado na parede por detrás da caixa registadora.
     Pessoalmente preferia a desordem da botica da sua infância. Graham aproximava-se a passos largos dos quarenta e começava a recordar com um aperto de coração o mundo que tinha conhecido; era como a âncora de um barco que arrastasse atrás de si durante uma tempestade.
     Lembrou-se de Smoot. No tempo em que Graham era uma criança, o velho Smoot trabalhava como gerente para o farmacêutico proprietário da botica do bairro. Smoot, que bebia durante as horas de trabalho e que se esquecia de descer a persiana da montra, fazendo que as alpergatas em exposição ficassem desbotadas. Smoot, que se esquecia de desligar a máquina de fazer café para em seguida ter de chamar os bombeiros. Smoot, que dava ~crédito às crianças que lhe compravam gelados.
     O seu maior crime fora o de ter encomendado cinquenta bonecas Kewpie a um vendedor numa altura em que o proprietário se encontrava de férias. No seu regresso, este suspendeu Smoot durante uma semana. Logo a seguir fizeram uma campanha de venda das bonecas. As cinquenta bonecas foram dispostas na montra em semicírculo, dando a impressão de que não tiravam os olhos de todas as pessoas que passavam na rua.
     Tinham uns olhos enormes de um azul lindíssimo. A sua exposição atraía os olhares de toda a gente, e Graham por diversas vezes se perdera na sua contemplação. Sabia perfeitamente que não passavam de bonecas, mas a sensação era a de que não tiravam os olhos dele. Tantas bonecas iguais. Muitas pessoas paravam para olhar para elas. Bonecas de gesso, todas com os mesmos caracóis um pouco ridículos - e no entanto todos aqueles olhares fixados nele faziam-lhe pele de galinha.
Só agora é que Graham começava a descontrair-se. Bonecas
a olharem para ele. Tentou beber um golo, mas engasgou-se e entornou a bebida no peito. Procurou às apalpadelas o candeeiro de mesinha de cabeceira. Tirou o dossier da gaveta da cómoda.
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Separou os relatórios de autópsia referentes às crianças dos Leeds e o esboço anotado do quarto principal e espalhou tudo em cima da cama.
     Ali estavam as três manchas de sangue na parede do quarto e as manchas correspondentes no tapete. Também estavam anotados os tamanhos das três crianças. Condizia tudo. Tudo. Nos três casos.
     Tinham sido instalados encostados à parede, em frente da cama. Um público. Um público de mortos. E Leeds. Amarrado pelo peito à cabeceira da cama. Numa posição como se estivesse sentado. Ficando com a marca da corda no peito e manchando a parede acima da cabeceira.
     O que é que eles olhavam? Nada, estavam todos mortos. Mas tinham os olhos abertos. Assistiam ao espectáculo dado pelo lunático e pelo corpo da Sr a Leeds, na cama, ao lado do Sr. Leeds. Um público. Este tarado podia ver os rostos à sua volta.
     Graham chegou a pensar se ele teria acendido uma vela. A luz vacilante teria dado um toque de vida aos seus rostos. Mas não fora encontrada nenhumavela. Talvez utilizasse uma da próxima vez.
Esta insignificante primeira ligação com o assassino
devorava-o como uma sanguessuga. Febril, Graham mordeu o lençol.
Por que é que os mudaste de posição? Não os podias ter
deixado ficar onde estavam ~ perguntou Graham. Há qualquer coisa que fizeste e que me queres esconder. Qualquer coisa de que tens vergonha. A menos que não possas permitir que eu o saiba.
Abriste-lhes os olhos?
A Sr a Leeds era linda, não era? Acendeste a luz depois
de teres cortado a garganta do marido para que ela o visse sangrar, nãofoi? Era insuportável ter de usar luvas quando lhe tocaste, não era?
Havia talco na perna dela.
Não havia talco na casa de banho.
Parecia que alguém lhe enunciava estes dois factos em voz baixa.
     Tiraste as luvas, não tiraste? O talco caiu da luva de borracha que tiraste para lhe tocares, não foi, seu filha da puta? Tocaste-a com as mãos nuas antes de voltares a calçar as luvas para a limpares. Mas enquanto estavas sem luvas, abriste-lhe os olhos?
     Ao quinto toque Jack Crawfard levantou o auscultador. Durante a noite atendera o telefone tantas vezes que esta nova chamada não o incomodou. - Jack, é Will. - Diz. - O Price ainda está nas Impressões Digitais Latentes? - Está. Já não sai muito. Está a trabalhar no ficheiro das impressões individuais.
- Acho que ele devia dar um salto a Atlanta.
- Porquê? Tu próprio disseste que eles tinham um bom especialista.
É bom mas não se compara com o Price.
Que é que queres que ele faça? O que é que ele deve investigar?
     As unhas das mãos e dos pés da Sr.ª Leeds. Estão envernizadas, é uma camada muito fina. E as cómeas dos olhos de toda a família falecida. Jack estou convencido de que ele tirou as luvas.
     - Meu Deus, Price vai ter de se mexer - disse Crawford. O funeral está previsto para esta tarde.
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CAPÍTULO  3

     - Estou convencido de que sentiu necessidade de lhe tocar - disse Graham à laia de preâmbulo,
     Encontravam-se os dois no comando da polícia de Atlanta. Crawfard estendeu-lhe uma coca-cola que tirara da máquina automática. Eram oito menos dez da manhã.
     - De certeza que a deslocou - disse Crawford. ­Encontrámos marcas nos pulsos e na parte posterior dos joelhos que o provam. Mas todas as impressões foram produzidas por luvas não porosas. Não te preocupes, Price já chegou. Um filho da mãe sempre a resmungar. Neste momento já vai a caminho da Casa Funerária. A morgue deixou levantar os corpos ontem à noite mas .a Casa Funerária ainda não fez nada. Estás com um aspecto horrível. Conseguiste dormir?
- Cerca de uma hora. Estou convencido de que sentiu
necessidade de lhe tocar com as mãos nuas.
- Espero que tenhas razão, mas o laboratório de Atlanta
jura a pés juntos que ele usou sempre luvas de cirurgião ­disse Crawford. - Os fragmentos de vidro tinham impressões lisas. Uma impressão do indicador na parte de trás do fragmento cravado nos grandes lábios e uma impressão esborratada do polegar na~ parte da frente do mesmo bocado de espelho.
- Provavelmente esfregou-o depois de o ter enterrado,
certamente para se conseguir ver ao espelho - disse Graham.
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     Aquele que ela tinha na boca estava manchado com sangue. E aconteceu o mesmo com os que lhe cravou nos olhos. Nunca chegou a tirar as luvas.
- A Sr.' Leeds era uma mulher de família, não viste? Se
me encontrasse numa situação íntima tenho a certeza de que gostaria de lhe tocar na pele. E tu, não?
- íntima? - Crawfard não conseguiu evitar que a voz lhe
traduzisse o nojo que a ideia lhe causava. Começou a verificar os bolsos como se procurasse qualquer coisa, para disfarçar.
- Sim, íntima. Estavam sós. Todos os outros estavam
mortos. Podia abrir-lhes ou fechar-lhes os olhos conforme lhe apetecesse.
     - Sim, podia fazer o que lhe apetecesse - disse Crawford. - Procuraram impressões em toda a pele, mas não deu nada. A única coisa que encontraram foi a marca de uma mão no pescoço.
O relatório não diz nada sobre a investigação de resíduos
nas unhas.
- Julgo que as unhas estavam sujas quando fizeram o
levantamento. Enterrou as unhas nas palmas das mãos. Nunca chegou a arranhá-lo.
- Tinha uns pés bonitos - observou Graham.
     - Umm-hmm. E se subíssemos - respondeu Crawford. Chegou a altura de passarmos as tropas em revista.
     O equipamento de Jiminy Price era bastante volumoso: duas malas grandes, mais um saco de fotógrafo e o tripé. Fez uma algazarra enorme ao entrar pela porta principal da Casa Funerária Lombard em Atlanta. Era um homem idoso e frágil e o interminável trajecto de táxi desde o aeroporto não melhorara em nada o seu temperamento.
     Um jovem untuoso, com o cabelo cortado à moda, conduziu-o para um gabinete decorado em tons de ameixa e creme. A secretária encontrava-se limpa de qualquer papel, tendo apenas uma estatueta conhecida por Mãos em Oração.
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Price estava a examinar os dedos das mãos em oração
quando entrou o próprio Sr. Lombard. Este verificou as
credenciais de Price com um cuidado meticuloso.
     - O seu escritório de Atlanta ou agência, como lhe quiser chamar, telefonou-me, como é lógico, Sr. Price. Mas na noite passada tivemos de chamar a polícia para pôr na rua um sujeito detestável, que tentava tirar fotografias para o The National Tattler. Vejo-me portanto na obrigação de ser extremamente prudente e tenho a certeza de que compreende; Sr. Price. Os corpos só nos foram entregues cerca da uma da manhã e o funeral está previsto para esta tarde às cinco horas. Não temos qualquer hipótese de o adiar.
     - Isto não vai demorar muito tempo - disse Price. ­Preciso de um assistente razoavelmente inteligente, se é que tem alguém nestas condições. Tocou nos corpos, Sr. Lombard?
- Não.
Tente saber quem é que lhes tocou. Tenho de recolher as
impressões digitais deles.
     Naquela manhã, na reunião dos inspectores encarregados do caso Leeds, falou-se sobretudo de dentes~
     O inspector-chefe de Atlanta, R. J. Springfield, conhecido por Buddy, um tipo corpulento em mangas de camisa, encontrava-se junto da porta na companhia do Dr. Dominic Princi, enquanto os vinte e três detectives iam entrando.
     - Muito bem, meus senhores, agora que estamos todos aqui, vamos fazer um grande sorriso - disse Springfleld. - Mostrem ao Dr. Princi os vossos dentes. É isso, mostrem os dentes todos. Meu Deus, Sparks, que é que se passa? Isto é a sua língua ou engoliu uma serapilheira? Vamos, entrem.
     Uma imagem frontal de uma dentadura muito ampliada, maxilar superior e inferior, estava afixada sobre o painel da ordem de serviço na parede por detrás do estrado. A Graham fazia-lhe lembrar uma fantasia de Carnaval. Sentou-se com Crawford no fundo da sala enquanto os detectives se sentavam em carteiras.
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     O comissário de segurança pública de Atlanta,, Gilbert Lewis, e o responsável das relações públicas encontravam-se à parte, em cadeiras desdobráveis, Lewis devia estar presente numa conferência de imprensa dali a uma hora..
O chefe de detectives Springfield iniciou a reunião.
     - Muito bem, já nos divertimos o suficiente. Se deram uma vista de olhos ao relatório desta manhã, verificaram de certeza que não se avançou um milímetro.
- Os interrogatórios sistemáticos casa a casa vão
continuar num raio de mais quatro blocos a partir da cena do crime. O Departamento R & 1 enviou-nos dois homens para os ajudarem a verificar todas as reservas aéreas e alugueres de automóveis tanto em Birmingliam como em Atlanta.
- Os detectives encarregados dos hotéis e do aeroporto
vão sair mais uma vez. Sim, foi isso que eu disse, hoje, mais uma vez. Interroguem as empregadas domésticas, os miúdos, os empregados de recepção. O homem teve de tomar banho em qualquer sítio e é muito possível que tenha deixado vestígios. Se encontrarem alguém que tenha feito a limpeza, saquem as pessoas do quarto, selem-no e dirijam-se em passo de corrida para a lavandaria. Finalmente temos qualquer coisa para vos mostrar. Dr. Princi?
     O Dr. Dominic Princi,_médico-chefe de patologia do condado de Fulton, encaminhou-se para o estrado, tomando lugar junto da ampliação dos dentes. Na mão tinha uma dentadura.


     - Meus senhores, os dentes do indivíduo devem ser muito parecidos com estes. O Smithsonian em Washington conseguiu fazer a reconstituição a partir das impressões recolhidas das dentadas encontradas no corpo da Sr a Leeds e de uma dentada
muito mais nítida num pedaço de queijo que estava no frigorífico dos Leeds. - Princi continuou. - Como podem ver, os incisivos laterais estão apertados, aqui e aqui - Princi apontou os dois pontos na dentadura que tinha na mão e em seguida na ampliação. - O alinhamento é imperfeito e falta um canto neste incisivo central. O outro incisivo tem um entalhe. Dá a ideia de um «chanfro de alfaiate», uma coisa que acontece a quem tem o hábito de partir linha com os dentes.
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     - Filho da mãe de dentuças - resmungou alguém no meio da assistência.
     - Diga-me uma coisa, Doe, como é que tem a certeza de que foi o indivíduo que deu uma dentada no queijo? - perguntou um detective de elevada estatura que se encontrava na primeira fila.
     Princi detestava que lhe chamassem «Doc», mas não se deu por achado.
     - Os vestígios de saliva encontrados no queijo e nos ferimentos correspondem ao mesmo tipo sanguíneo. Os dentes e o tipo de sangue das vítimas são diferentes.
     - Bom trabalho, Doutor - disse Springfleld. - Vamos agora entregar-lhes fotografias dos dentes.
     - E se comunicássemos aos jornais? - perguntou Simpkins, o responsável das relações públicas. - Com um texto do gênero «Alguma vez viu estes dentes?».
     - Não vejo qualquer inconveniente - disse Springfleld. E o senhor, comissário?
Lewis acenou com a cabeça.
Mas Simpkins ainda não tinha terminado.
     - Dr. Princi, a imprensa vai perguntar-nos por que é que foram precisos quatro dias para construir esta reprodução. Também vai querer saber por que é que foi preciso pedir ajuda a Washington.
O agente especial Crawford não tirava os olhos da ponta
da sua esferográfica.
O Dr. Princi corou, mas a voz manteve-se calma.
     - As marcas de dentadas na carne são deformadas quando o corpo é removido, Sr. Simpson.---.
- Simpkins. <
     - Pois seja, Simpkins. Nunca teríamos conseguido este resultado apenas com as dentadas na vítima e é aí que o queijo entra em jogo. O queijo é relativamente sólido,- bastante delicado para uma moldagem. É preciso começar por o barrar de óleo para que não haja aderência de bolor- O Smithsonian já fez trabalhos deste gênero para o laboratório criminal do FbI. Está mais bem equipado para conseguir fazer um estudo facial e possui um articulador
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anatómico. Além disso, tem como consultor um especialista em odontologia. E nós não temos. Mais alguma coisa?
- Seria correcto dizermos que o atraso foi devido ao
atraso no laboratório do FBI em vez de nos considerarmos responsáveis?
Princi voltou-se para ele.
     - O que seria correcto dizermos, Sr. Simpkins, é que foi um investigador federal, o agente especial, Crawford, que descobriu o queijo no frigorífico há dois dias, muito depois de os vossos homens terem virado o local do avesso., Foi a meu pedido que ele requisitou o trabalho, de laboratório. De qualquer modo, confesso que me sinto aliviado por saber, que não foi nenhum de vocês que deu uma dentada no queijo.


     O comissário Lewis interrompeu, fazendo ecoar por toda a sala a sua voz de baixo.
     - Ninguém está a pôr em causa a sua opinião, Dr. Princi. Simpkins, a última coisa de que precisamos é de começar uma merda de uma disputa com o FBI. Acabem com isso.
     - Estamos todos no mesmo barco - disse Springfleld. Jack, os seus homens querem acrescentar mais alguma coisa?.
     Crawfard tomou a palavra. Nem todos os rostos que se voltavam para ele mostravam sinais de simpatia. Era preciso fazer qualquer coisa a esse respeito.
- A única coisa que me interessa, chefe, é desanuviar o
ambiente. Há alguns anos havia uma rivalidade acentuada entre nós. Quer fossem os federais, ou a polícia local, cada um procurava puxar a manta e destapar o outro. E os criminosos aproveitavam para se escaparem. Presentemente, o Bureau e eu já não pensamos dessa maneira. Estou-me nas tintas para quem levar a taça. O investigador Graham é da mesma opinião. Para quem ainda não o conheça, é aquele que está sentado ali ao fundo. Se o tipo que fez isto for atropelado por um camião do lixo, para mim está perfeito, uma vez que a única coisa que é importante é que seja posto fora de circulação. Tenho a certeza de que vocês pensam da mesma maneira.
     Crawford olhou para os detectives. Esperava que se acalmassem e que não procurassem armar-se em vedetas. O comissário Lewis dirigiu-lhe a palavra.
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- O investigador Graham já trabalhou neste tipo de casos? ­Já.
- Sr. Graham, talvez tenha alguma coisa a acrescentar,
uma sugestão?
Crawford interrogou Graham com o olhar.
     - Quer fazer o favor de se aproximar do estrado? - disse Springfield.
     Graham teria preferido falar com Springfield em particular. Fazer uma exposição diante de toda a gente não o animava por aí além. No entanto, fez o que lhe pediam.
Despenteado e tisnado pelo sol, Graham não se parecia de
modo nenhum com um investigador federal. Springfield achava que se parecia mais com um pintor da construção civil que se tivesse endomingado para comparecer em tribunal.
Os detectives agitaram-se nas cadeiras.
     Mas quando Graham se voltou para enfrentar a assistência, os olhos, de um azul-deslavado, fazendo contraste com o rosto bronzeado, conseguiram imobilizá-los nos lugares.
     - Só algumas palavras - começou ele. - Não podemos concluir que se trate de um antigo doente mental ou de alguém. que já tenha sido condenado por atentados ao pudor. Existem até muitas possibilidades de que não possua cadastro. E, se tiver, será mais do gênero de roubo por arrombamento.
     - Pode ser que em crimes menores tenha manifestado a sua tendência para morder, como por exemplo em lutas de bar ou maus tratos infligidos a crianças. Neste aspecto, a maior ajuda que poderemos ter virá eventualmente do pessoal dos serviços de emergência e dos elementos da assistência social. Será preciso verificar todos os casos graves de dentadas de que eles se possam lembrar, sem ter em conta a personalidade da vítima ou o modo de se relacionar com os acontecimentos. E era só isto que lhes queria dizer.
     O detective de elevada estatura que se encontrava na fila da frente ergueu a mão e falou ao mesmo tempo.
- Mas para já só tem mordido mulheres, não é?
     - Segundo as informações que temos, é de facto assim. No entanto, não há dúvida de que morde de mais. Seis dentadas
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graves na Sr a Leeds, oito na Sr.' Jacobi. Temos de concordar
que é um bocado acima'da média.
- Que média?
- A dos crimes sexuais, que é de três. Não, não há dúvida de que gosta de morder.
- As mulheres.
     - Na maioria dos crimes sexuais, a dentada caracteriza-se por uma mancha esbranquiçada no centro, na zona da sucção. Nestes casos, estas características não aparecem. O Dr. Prinei fez menção desse facto no seu relatório de autópsia e eu próprio tive oportunidade de o verificar na morgue. Não existem vestígios de sucção. Talvez morda mais pelo prazer da luta do que por preversão sexual.
- É muito pouco - disse o inspector.
Mas vale a pena verificar - disse Graham. - Todos os
casos de dentadas devem ser verificados. As pessoas mentem sobre o modo como as coisas se passaram. Os pais de uma criança que foi mordida dirão que foi um animal e deixarão que seja vacinada contra a raiva, só para evitar o escândalo na família, todos vocês já se defrontaram com casos desses. É melhor informarem-se junto dos hospitais e procurarem saber quem foi vacinado contra a raiva.
     - Pronto, agora é que acabei. - Quando Graham se sentou, os músculos das coxas crisparam-se-lhe com a fadiga.
     - Vale a pena perguntar e vamos fazê-lo - disse o inspector-chefe Springfield. - O grupo dos Cofres e Armazéns vai ocupar-se do quarteirão juntamente com o grupo de Furtos por' Esticão. Pensem no cão. Os dados e a fotografia encontram-se no dossier. Tentem descobrir se o cão foi visto na companhia de um estranho. Quanto aos Costumes e Drogas, ocupem-se dos cowboys da nossa praça e dos bares manhosos depois do trabalho de rotina. Marcus e Whitman, atenção às presenças no funeral. Terão os parentes e amigos de família que desfilarão diante de vocês. Bom. Que é que se passa com o fotógrafo? Certo. Entreguem o
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livro de registo de condolências do funeral ao R & 1. Estes
já receberam o de Birmingliam. O resto das missões, encontram-se especificadas na folha de serviço. Vamos a isto.,
- Só mais uma coisa - disse o comissário Lewis. Os
detectives voltaram a afundar-se nos assentos. - Ouvi agentes deste comando referirem-se ao assassino pelo nome de Dentuças. Estou-me nas tintas para aquilo que lhe chamam entre vocês, concordo que têm de lhe chamar qualquer coisa. Mas gostaria de que nenhum agente se lhe referisse em público por «Dentuças». Não dá um ar muito profissional. Do mesmo modo, não quero que esse nome apareça em nenhum relatório interno. É tudo, meus senhores.
     Crawford e Graham acompanharam Springfield de regresso ao seu gabinete. O inspector-chefe serviu-lhes café,,enquanto Crawford ligava à central telefónica para tomar nota das mensagens que lhe eram destinadas.
     - Ontem não consegui falar-lhe a sós - disse Springfield a Graham. - Isto está uma autêntica casa de doidos. O seu nome é mesmo Will? Os rapazes conseguiram arranjar-lhe tudo aquilo de que precisava?
- Sim, foram perfeitos.
- Estamos a «patinar» de uma forma incrível - observou
Springfield. - É certo que se conseguiu uma fotografia das pegadas encontradas no canteiro de flores. Deixou pegadas nos arbustos e na relva e praticamente aquilo que se sabe é o número que calça e talvez uma ideia da sua estatura. A pegada esquerda é um pouco mais profunda, o que pode significar que transportava qualquer coisa. É um trabalho delicado., mas, no entanto, há alguns anos, conseguimos apanhar um ladrão a


partir de uma fotografia como esta. Revelava que o indivíduo tinha a doença de Parkinson. Princi conseguiu identificar as características. Desta vez não temos tanta sorte.
- Tem uma boa equipa - disse Graham.,
- É verdade, mas não estamos habituados a este tipo de
trabalho, graças a Deus. Responda-me francamente, vocês trabalham sempre juntos, o senhor, Jack e o Dr. Bloorn, ou só se reúnem para casos como este?
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Só para casos destes - respondeu Graham.
Não há dúvida de que é uma equipa de respeito. Ainda há
um bocado o comissário dizia que foi o senhor que fisgou o Lecter há três anos.
- Estávamos os três a trabalhar em colaboração com a
polícia de Maryland - disse Graham. - Foi ela que o prendeu. Springfild, era teimoso, mas não era estúpido, Notava~se
que Graham não estava à vontade. Fez rodar a cadeira ao mesmo tempo que reunia algumas folhas.
     - Vocês quiseram saber o que aconteceu ao cão. Está aqui a informação a esse respeito. Na noite passada, um veterinário da zona telefonou ao irmão de Leeds. O cão estava em casa dele. Leeds e o miúdo mais velho levaram-no ao veterinário na tarde do dia em que foram assassinados. Tinha um abcesso no abdômen. O veterinário operou-o e correu tudo bem. De início, pensou que se tratava de um ferimento por bala, mas não encontrou nada. Está convencido de que o cão foi ferido com um picador de gelo ou com uma sovela. Temos andado a perguntar aos vizinhos se viram alguém a brincar com o cão e hoje telefonámos aos veterinários da zona para saber se encontraram mais algum caso de mutilação.
- O cão trazia uma coleira com o nome dos Leeds?,
- Não.
- E em Birmingam os Jacobi tinham um cão? - perguntou
Graham.
- Já devíamos ter verificado isso - disse Springfild.
Espere um instante. - Marcou um número interno. - O tenente Flatt faz a nossa ligação com Birmingham ... Está, Flatt? O que é que se sabe sobre o cão dos Jacobi? Sim, sim ... Uh-huh ... uh-huh. Um minuto. - Colocou a mão sobre o micro. - Não há cão. Encontraram um prato de gato, sujo, no quarto de banho do rés-do-chão, mas não havia vestígios de gato. Os vizinhos estão a tentar encontrá-lo,
     - Peça a Birmingliam para verificarem no jardim e nas construções vizinhas - disse Graham. - Se o gato foi ferido, é possível que as crianças não o tenham encontrado a tempo e depois o tenham enterrado. Conhece os gatos. Escondem-se para
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morrer. Os cães regressam para junto dos donos. Pode também perguntar-lhes se tinha uma coleira?
- Diga-lhes que lhes enviamos uma sonda de metano, se
precisarem - disse Crawford. - Evita as escavações. Springfield transmitiu as questSes. O telefone tocou logo
que acabou de desligar. A chamada era para Jack Crawford- e era de Jiminy Price, que ainda se encontrava na Casa Funerária Lombard. Crawford atendeu no outro telefone.
     - Jack, encontrei impressões num fragmento, provavelmente de um polegar e de parte da palma.


- Jimmy, és a luz da minha vida.
- Eu sei. O fragmento está tingido e a impressão
esborratada. Tenho de ver o que é que posso fazer quando regressar. É do olho esquerdo do filho mais velho. É a primeira vez que faço uma coisa destas. Quase que passava sem o notar mas sobressaía da hemorragia provocada pelo ferimento
de bala.
- Achas que consegues identificá-lo?
     - Pode demorar muito tempo, Jack. É possível, se estiver registado no ficheiro de impressões individuais, mas é a mesma coisa que procurar uma agulha num palheiro. A impressão da palma foi recolhida no dedo grande do pé esquerdo da Sr a Leeds. Só serve para comparação. Teremos muita sorte se for possível avançar com isto. Estavam presentes o adjunto responsável das relações públicas e o próprio Lombard. Tirei fotografias in situ. Achas que chega?
- Lembraste-te de tirar as impressões digitais dos
empregados da Casa Funerária?
     - Recolhi as impressões de Lombard e dos seus gatos-pingados, mesmo daqueles que disseram que não tinham
tocado nos cadáveres. Neste momento estão a lavar os dedos e a rogar-me pragas. Quero ir-me embora, Jack. Trabalho melhor na minha própria câmara escura. Quem sabe o que será possível encontrar? Posso apanhar o avião de Washington dentro de uma hora e enviar-te as fotografias das impressões ao princípio da tarde.
Crawfard pensou por momentos.
Okay, Jimmy, mas anda depressa com isso. E envia cópias
ao FBI e à polícia de Atlanta e de Birmingiam.
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- Está combinado. Há mais uma coisa que temos de
esclarecer - disse Price.
Crawford ergueu os olhos para o tecto.
- Não digas que me vais chatear com a diária? É isso mesmo.
- Meu velho Jimmy, nunca mais poderei recusar-te o que
quer que seja.
Graham olhou pela janela enquanto Crawfard os punha ao
corrente a respeito das impressões.
- É de facto notável - limitou-se a dizer Springfield.
O rosto de Graham estava lívido, fechado como o de um
condenado, pensou Springfield.
Ficou a observar Graham até este ter saído da sala.
     Na altura em que Graham e Crawford deixaram o gabinete de Springfield estava a terminar a conferência de imprensa dada pelo comissário. Os jornalistas da imprensa escrita­precipitaram-se para os telefones. Os repórteres de televisão estavam a fazer «cortes», permanecendo de pé diante das câmaras para relatar as melhores perguntas que foram ouvidas na conferência de imprensa; a seguir, estendiam os microfones para o vazio, para obter uma resposta que seria inserida mais tarde a partir da sequência, de respostas dadas pelo comissário.
     Crawfard e Graham desciam a escada principal quando um homenzinho os ultrapassou para se voltar em seguida e lhes tirar uma fotografia. O rosto surgiu atrás da máquina fotográfica.
- Will Graham! ' - exclamou. - Lembra-se de mim? Freddy
Lounds! Fiz a cobertura do caso Lecter para o Tattler e fui eu que escrevi a reportagem.
     - Lembro-me muito bem - disse Graham. Crawford e ele continuaram a descer as escadas enquanto Lourids caminhava de lado diante deles.
     - Quando é que o chamaram, Will? O que é que já conseguiu saber?
- Não tenho nada para lhe dizer, Lotinds.
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- Qual é a diferença entre este tipo e Lecter? Fez-lhes ... -


Lounds - Graham quase gritou e Crawford. colocou-se entre os dois homens. - Lounds, os seus artigos são uma merda e o The National Tattler só serve para limpar o cu. Pire-se!
Crawford agarrou Graham pelo braço.
     - Vá, Lounds, ponha-se a andar. Já. WilI, vamos tomar um pequeno-almoço à nossa vontade. Anda daí.


Voltaram a esquina, caminhando calmamente.
     - Desculpa-me, Jack, mas não consigo suportar este tipo. Aproveitou o facto de eu estar no hospital para ...
- Eu sei - disse Crawford. - Fui eu que o pus na rua,
não lhe fez mal nenhum. - Crawford lembrou-se da fotografia publicada no The National Tattler na altura em que o caso Lecter terminara. Lounds introduzira-se no quarto do hospital enquanto Graham estava a dormir. Afastara o lençol, tirando uma fotografia ,que mostrava o ânus artificial temporário de Graham. O jornal limitara-se a cobrir o baixo-ventre de Graham com um quadrado negro e a publicar a fotografia com o subtítulo «Louco esfaqueia polícia».
O restaurante era tranquilo e agradável. Graham, com as
mãos ainda trémulas, deixou entornar café no pires.
     Viu que o fumo do cigarro de Crawford incomodava um


casal que se encontrava na mesa vizinha.- O casal comia com lentidão, num silêncio carregado de rancor.
Duas mulheres - aparentemente mãe e filha - discutiam
próximo da porta. Falavam em voz baixa, mas os rostos encontravam-se deformados pela cólera, uma cólera que Graham conseguia sentir no seu próprio rosto, na nuca.


A perspectiva de ter de testemunhar, num processo em
Washington naquela própria manhã irritava Crawford. Receava a possibilidade de ser retido durante vários dias. Enquanto acendia mais um cigarro, observava as mãos de Graham e o tom da pele.
- Atlanta e Birmingham vão comparar a impressão do
polegar com as dos maníacos sexuais que já têm cadastro ­disse Crawford. - Nós podemos fazer o mesmo. Entretanto Prince já
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tirou dos dossiers uma impressão individual, Vai submetê-la ao Finder. Olha que já adiantámos um bom bocado de trabalho!


     O Finder era uma máquina do FBI que permitia ler e fazer o tratamento das impressões; era capaz de identificar a impressão do polegar a partir de uma ficha relativa a um assunto totalmente diferente.
     - Quando o apanharmos, a impressão digital e os dentes constituirão provas conclusivas - disse Crawford. - Para já, temos de nos limitar a imaginar qual será o aspecto dele, o que poderá corresponder a imensa gente. Mas suponhamos que conseguimos deter um suspeito com francas possibilidades de ser o nosso homem. -Avanças para o veres. O que é que pode haver a respeito dele que não te surpreenda?
     - Não faço ideia, Jack. Estás a ver, para mim ele ainda não tem um rosto. Poderíamos passar anos à procura de gente que inventámos. Conseguiste falar com Bloorn?
- Falei com ele ontem à noite ao telefone. Bloorn não
acredita que- se trate de um suicida e Heiralich pensa o mesmo. Bloorn só esteve aqui meia-dúzia de horas no primeiro dia, mas ele e Heiralich têm o dossier completo. Esta semana, Bloora está a fazer exames a candidatos a doutoramento. Manda-te cumprimentos. Tens o número dele de Chicago?


- Tenho.,
     Graham gostava do Dr. Alan Bloorn, um homenzinho roliço de olhos tristes, mas que era um psiquiatra forense de primeira categoria. Graham apreciava sobretudo o facto de o


Dr. Bloorn nunca ter procurado ver nele um assunto de estudo.. Não se podia dizer o mesmo de outros psiquiatras.
- Bloora disse-me que não ficaria nada surpreendido se
viéssemos a ter notícias do Dentuças. Podia mesmo acontecer que nos enviasse uma mensagem - disse Crawford.
- Na parede de um quarto.
     Bloom acredita que ele esteja desfigurado ou que acredite que se encontra desfigurado. Disse-me, no entanto, para não dar muita importância a esse aspecto. «Não quero que percam a presa em busca de uma sombra», foi o que ele me disse. «Só iria
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distrair-vos e arruinar os vossos esforços.» Parece que lhe ensinaram a falar assim na universidade.


- Ele tem razão - observou Graham.
     - Deves saber qualquer coisa senão não tinhas descoberto a impressão digital - disse Crawford.,
     - Ouve, Jack, havia indícios suficientes na parede. Não tive qualquer influência. E além disso gostava que não esperasses demasiado de mim. De acordo?
     - Descansa que vamos apanhá-lo. Tenho a certeza de que concordas comigo.
- Sim, vamos apanhá-lo. De uma maneira ou de outra.
- Como, por exemplo?
Havemos de encontrar indícios que nos tenham escapado.
- E a outra maneira, qual é?
- Vai continuar no mesmo ritmo até ao dia em que fará
demasiado barulho ao entrar na casa e o marido tenha tempo de pegar numa arma.
- Não há mais soluções?
     - Julgas que o vou conseguir detectar no meio de uma multidão? Isso é bom para o Ezio Pinza. O Dentuças continuará até que tenhamos sorte suficiente ou provas que cheguem. Mas não irá parar.
- Porquê?
- Porque encontra prazer numa coisa destas.
- Diz-me uma coisa, afinal conhece-lo melhor do que
aquilo que queres dar a entender - disse Crawford.
Graham só lhe respondeu depois de terem saído do
restaurante.
- Espera até à próxima lua cheia - disse Graham. - E
depois já me podes dizer o que é que eu sei a respeito dele. Graham voltou para o hotel e dormiu duas horas e meia.
Acordou ao meio-dia, tomou um duche e encomendou café e uma sandes. Chegara a altura de estudar com atenção o dossier Jacobi. Lavou os óculos com o sabonete do hotel e sentou-se perto da janela com o dossier. Durante os primeiros minutos,
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erguia a cabeça a cada ruído, passos no hall ou o bater longínquo da porta do elevador. Até que se concentrou totalmente no dossi*er.,
     O empregado bateu à porta por diversas vezes. Quando se cansou de esperar, pousou o tabuleiro diante da porta e assinou ele próprio a factura.
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CAPÍTULO  4
Hoyt Lewis, leitor de contadores da Companhia de


Electricidade da Georgia, estacionou a carrinha debaixo de uma grande árvore da avenida e recostou-se no assento, procurando uma posição mais confortável para almoçar. Deixara de ser agradável desembrulhar um almoço que fora embalado por ele. Ia longe o tempo dos bilhetinhos e das palavras carinhosas.
     Ia a meio da sandes quando uma voz grossa lhe fez dar um salto.
     - Se não me engano devo ter gasto cerca de mil dólares de electricidade apenas em relação ao mês passado.
     Lewis voltou-se e viu a face corada de H. G. Parsons à janela da carrinha. Trazia uns calções tipo bermudas e tinha uma vassoura na mão.
- Não percebi o que disse.
- Vai dizer-me que gastei cerca de mil dólares de
electricidade? Percebeu agora?
- Sr. Parsons, não faço a menor ideia de quanto é que
gastou porque ainda não li o seu contador. Quando o tiver lido faço o registo na minha ficha.
Parsons preocupava-se com o valor da factura e já por
várias vezes apresentara queixa junto dos serviços competentes.
- Sei muito bem aquilo que gasto - disse Parsons. - Vou
apresentar uma queixa à Comissão de Litígios sobre o que se está a passar.
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- Quer ir ler o contador comigo? Podemos ir lá e ...
     - Sei perfeitamente ler um contador. E tenho a certeza de que você também o podia fazer se não fosse tão cansativo.
- Ouça uma coisa, Parsons - disse Lewis saindo da
carrinha. - No ano passado o senhor colocou um íman no contador. A sua esposa disse-me que estava no hospital. Aproveitei para o retirar e passei uma esponja sobre o assunto. Mas fui obrigado a fazer um relatório quando no Inverno passado o senhor deitou melaço no contador. E verifiquei que pagou sem discutir quando lhe apresentaram a factura. A sua factura aumentou depois de todas as instalações eléctricas que o senhor fez. Fartei-me de lhe dizer que na sua casa havia uma fuga qualquer de corrente. Contratou um electricista para ver qual era a razão? Não, preferiu ir aos escritórios queixar-se de mim. Estou farto até às pontas dos cabelos das suas atitudes. - Lewis estava branco de cólera.
- Vou ser franco consigo - disse Parsons, dirigindo-se
para o jardim da sua casa. - Está a ser vigiado, Sr. Lewis. Vi alguém que anda à sua frente a fazer o mesmo percurso de contagens - disse ele já do lado de lá da vedação. - Não tarda muito que tenha de começar a procurar outro-trabalho.
     Lewis arrancou, conduzindo ao longo da avenida. Precisava de arranjar outro local para acabar de almoçar. E era pena. Há anos que almoçava à sombra daquela árvore.
Ficava exactamente nas traseiras da casa de Charles Leeds.
     +s cinco e meia da tarde, Hoyt Lewis meteu-se no seu carro particular e seguiu para o bar do aeroporto, Cloud Nine, onde bebeu vários copos para se descontrair.
Quando telefonou à sua ex-mulher, só conseguiu dizer-lhe:
- Gostava tanto que continuasses a preparar o meu almoço.
     - Devias ter pensado nisso antes. Espertinho - disse ela, desligando em seguida.
Sem convicção, jogou uma partida de cartas com vários
empregados da Georgia Power. Parecia procurar alguém no meio da multidão. Funcionários da companhia aérea começavam a invadir
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o Cloud Nine. Tinham todos o mesmo bigodinho e o mesmo anel com uma pedra de fantasia. Só faltava que montassem um jogo de dardos no Cloud Nine e o transformassem em pub inglês ... Já não se consegue estar tranquilo em casa!
- Viva, Hoyt. Jogamos a uma caneca de cerveja? - Era
Billy Meeks, o seu chefe de serviço.
- A propósito, Billy, preciso de falar contigo.
- Que é que se passa?
     - Conheces aquele velho filho da mãe do Parsons que passa a vida a telefonar?
- Telefonou-me na semana passada - disse Meeks. - Que é
que ele fez?
     - Disse-me que há alguém a fazer o meu giro antes de mim, como se estivesse a verificar se eu fazia o meu trabalho. Não pensas que eu faça a leitura dos contadores deitado na cama, pois não?
- Nem pensar nisso.
- Não acreditas, pois não? Quer dizer ... Se estou na
lista negra de alguém, quero que mo venham dizer directamente. - Se estivesses na minha lista negra, achas que tinha
medo_ de te dizer cara a cara?
- Não.
     - Assim está melhor. Escuta, se alguém estivesse a verificar o teu itinerário, eu era o primeiro a sabê-lo. As chefias estão sempre ao corrente deste gênero de situações. Ninguém está a investigar a teu respeito, Hoyt. Não podes ligar àquilo que o Parsons te diz, não passa de um velho rabugento. Telefonou-me a semana passada para me dizer: «Parabéns por ter começado a prestar mais atenção ao trabalho de Hoyt Lewis.» Nem sequer lhe liguei.
- A minha pena é não lhe termos atirado com a lei para
cima quando foi o caso daquele contador - disse Lewis. - Vê lá tu que hoje estava muito descansado na avenida à sombra de uma árvore a comer a minha sandes, quando o Fulano me saltou em cima. Do que o gajo está a precisar é de um bom pontapé no cu.
- Quando eu fazia o teu itinerário, era também aí que
parava para almoçar - disse Meeks. - Olha uma coisa, já te tinha
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contado que cheguei a ver a Sr.'Leeds? Não parece lá muito certo estar agora a falar dela, uma vez que já morreu, mas uma ou duas vezes vi-a cá fora nas traseiras, em fato de banho, a bronzear-se. Uhau! Que corpo que ela tinha! É uma vergonha o que lhe aconteceu.'Era uma senhora simpática.
- Já apanharam alguém?
- Nem pó.
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     - Chester está convencido de que o mestre da tipografia, por quinhentos dólares, era capaz de fazer milagres.
- Detesto ter de pôr uma mensagem em linguagem clara,
Jack. O mais certo é Lecter nunca mais ouvir falar dele.
- Tens razão, mas também tenho medo de deixar seguir o
anúncio de Lecter sem saber o que é que ele diz - disse Crawford. - O que é que Lecter podia dizer-lhe que ele já não saiba? Se ele descobre que temos uma impressão parcial de um polegar e que as suas impressões não constam de qualquer ficheiro, podia raspar a pele do polegar, mudar os dentes e no tribunal dar uma gargalhada monstra.
     - A questão do polegar não estava mencionada no processo que Lecter viu. É melhor deixarmos seguir a mensagem de Lecter. Pelo menos tem a vantagem de encorajar o Dentuças a voltar a contactá-lo.
     - E se isso o encoraja a fazer mais qualquer coisa do que se limitar simplesmente a escrever?
- Era o suficiente para nos pôr doentes durante muito
tempo - disse Graham. - Mas temos de o fazer.
Em Chicago, quinze minutos mais tarde as grandes
rotativas do Tattler começaram a rolar, aumentando de velocidade até conseguirem levantar uma nuvem de pó na sala de tipografia. O agente do FBI que aguardava, envolvido pelo cheiro da tinta e pelo calor abafado das máquinas, pegou num dos primeiros exemplares que surgiram das rotativas.
Os cabeçalhos incluíam títulos como «Transplante de
cabeça!» e «Astrónomos conseguem avistar Deus!».
     O agente teve o cuidado de verificar que o anúncio pessoal de Lecter estava publicado no local próprio, e expediu o jornal por correio expresso para Washington. Havia de ver mais tarde o mesmo jornal e recordar-se da impressão do seu polegar sujo de tinta na primeira página, mas isso seria anos depois, ao visitar com os filhos a sala de provas célebres, numa visita que fizeram à sede do FBI.
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CAPÍTULO  15
     Uma hora antes de amanhecer, Crawford acordou de um sono profundo. Viu o quarto às escuras, e sentiu o traseiro de sua esposa encostado confortavelmente contra os seus rins. Não compreendeu por que é que acordou, até que o telefone tocou uma segunda vez. Levantou o auscultador sem pressas.
- Jack, é o Lloyd Bowman. Tenho a chave do código. Tens
de saber imediatamente do que é que se trata.
     - Okay, Lloyd. - Com as pontas dos pés Crawfard procurava os chinelos.
- Diz: «A casa de Graham é em Marathon, Florida.
Defenda-se. Mate-os a todos.»


- Porra. Tenho de sair.
- Eu sei.
     Crawford dirigiu-se para a secretária sem sequer se preocupar em vestir o roupão. Telefonou duas vezes para a Florida, uma vez para o aeroporto, e a seguir telefonou a Graham para o hotel.
- WilI, Bowman acabou de decifrar a mensagem.
- O que é que diz?
     - Digo-te já. Mas primeiro tens de me ouvir. Não há qualquer problema. Tomei todas as providências, portanto faz-me o favor de te manteres ao telefone enquanto falar contigo.
- Diz-me já.


     - É a direcção da tua casa. Lecter deu ao filho da mãe a direcção da tua casa. Espera, Will. O departamento do xerife tem
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neste momento dois carros a caminho de Sugarloaf. A lancha da alfândega de Marathon vigia o lado do mar. O Dentuças não era capaz de ter feito o que quer que fosse em tão pouco tempo. Aguenta. Consegues resolver as coisas muito mais depressa comigo a ajudar-te. Ouve agora o que vou dizer-te.


» Os ajudantes do xerife não vão assustar a Molly. Vão
limitar-se a fechar a estrada que vai para tua casa. Dois ajudantes vão aproximar-se o suficiente para vigiarem a casa. Podes telefonar-lhe quando ela acordar. Vou buscar-te dentro de meia hora.
- Já não me apanhas aqui.
- O primeiro avião não parte antes das oito. Torna-se
muito mais rápido trazê-los para cá. A casa do meu irmão em Chesapeake está vaga e à disposição. Tenho um bom plano, WilI, espera e ouve o que te digo. Se não estiveres de acordo, eu próprio te levo ao avião.
- Preciso de algumas armas.
- Arranjamo-las depois de te ir buscar.
     Molly e Willy foram dos primeiros a sair do avião no Aeroporto Nacional, em Washington. Ela avistou Graham no meio da multidão, não sorriu, mas voltou-se para Willy e disse qualquer coisa, enquanto caminhavam apressadamente na frente da torrente de turistas que regressavam da Florida.
     Olhou para Graham de alto a baixo e aproximou-se dele, dando-lhe um beijo ao de leve. Os dedos morenos com que lhe tocou no rosto estavam gelados.
     Graham sentiu que o rapaz os observava. Apertou-lhe a mão com o braço estendido.
     Enquanto caminhavam para o carro, Graham disse um gracejo sobre o peso da mala de Molly.
- Eu levo a mala - disse Willy.
Um Chevrolet castanho com placas de Maryland seguiu-os
enquanto saíam do parque automóvel.
     Graham atravessou a ponte em Arlington, enquanto lhes indicava os monumentos a LincoIn e Jefferson e logo a seguir o
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monumento a Washington, antes de virarem para este em direcção a Chesapeake Bay. Dez milhas depois de terem saído de Washington, o Chevrolet colocou-se a par deles na pista do lado de dentro e o condutor olhou para eles, ao mesmo tempo que punha uma mão em concha na boca, e uma voz, vinda não se sabia de onde, soou dentro do carro.
- Fox Edward, não são seguidos. Façam boa viagem.
Graham pegou no microfone que se encontrava oculto no
painel do carro.
- Roger, Bobby, muito obrigado.
     O Chevrolet voltou a deixar-se ficar para trás, ao mesmo tempo que fazia sinal de que ia inverter o sentido de marcha.
- Foi só para termos a certeza de que não éramos seguidos
por nenhum carro da imprensa ou por qualquer outro carro disse Graham.
- Compreendo - disse MoIly.
     Quase que ao fim da tarde estacionaram num restaurante ao lado da estrada e comeram caranguejos. Willy foi espreitar o tanque das lagostas.
- Detesto toda esta situação, MoIly. Perdoa-me - disse
Graham.
- Agora anda atrás de ti?
     - Não temos nada que nos garanta isso. Lecter limitou-se a sugerir-lhe que o fizesse, dizendo mesmo que o fizesse o mais rapidamente possível.
- É uma situação que me deixa doente e desorientada.
- Eu sei que tens razão. Na casa do irmão de Crawfard
estás perfeitamente em segurança com Willy. Ninguém neste mundo sabe que vais para ali a não ser eu e Crawford.
- Para já não queria falarem Crawford.
- É um lugar agradável, vais ver.
     Inspirou profundamente e quando deixou escapar o ar parecia que a irritação se desvanecera com o ar que tinha expirado, deixando-a cansada e ao mesmo tempo calma. Sorriu-lhe com um ar astuto.
     - Chiça, já sei que vou dar em doida durante algum tempo. Temos de aturar algum dos Crawfard?
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     - Nem um. - Afastou o cesto do pão para lhe pegar na mão. - O que é que Willy sabe sobre tudo isto?
     Praticamente tudo. A mãe de um dos seus amigos, Torrany, comprou no supermercado uma porcaria de um jornal qualquer e levou-o para casa. Tommy mostrou-o a Willy. Havia uma data de coisas a teu respeito e, ao que parece, bastante distorcidas. Acerca de Hobs, o lugar para onde foste depois disso, Lecter, tudo. Deixou o miúdo preocupado. Perguntei-lhe se queria falar sobre o assunto. Só me perguntou se eu estava ao corrente do que se passara. Disse-lhe que sim, que tu e eu já tínhamos falado uma vez a esse respeito, que me contaras tudo antes de nos termos casado. Perguntei-lhe se queria que esclarecesse alguma coisa. Disse-me que te havia de perguntar a ti cara a cara.
- Ainda bem. É óptimo para ele. Que jornal era, o Tattler?
- Não sei, julgo que sim.
- Obrigadinho, Freddy. - O facto de se ter lembrado de Freddy Lounds fê-lo ter um acesso de ira que o obrigou a levantar-se. Foi à casa de banho lavar a cara com água fria.
     Sara ia ao gabinete de Crawford para lhe dar as boas-noites quando o telefone tocou. Pousou a carteira e o guarda-chuva para atender.
     - Gabinete do agente especial Crawford... Não, o Sr. Graham não está no escritório, mas deixe-me ... Espere, tenho todo o gosto em ... Sim, amanhã à tarde está aqui, mas deixe-me ...
O tom da voz dela chamou a atenção de Crawford, que se
aproximou da secretária.
Segurava no auscultador com um ar incrédulo.
- Perguntou por Will e disse que talvez voltasse a
telefonar amanhã à tarde. Tentei impedi-lo de desligar.
- Quem?
- Disse: «Diga ao Sr. Graham que é o Peregrino.» Foi o
que o Dr. Lecter chamou ao ...
- Dentuças - disse Crawford.
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     Enquanto Molly e Willy desfaziam as malas, Graham foi ao supermercado. Comprou meloas e alguma fruta. De regresso, parou em frente da casa do outro lado da rua e deixou-se ficar sentado por alguns minutos, as mãos ainda a agarrarem o volante. Sentia-se envergonhado porque, por causa dele, Molly fora obrigada a sair da casa de que gostava e a vir viver no meio de estranhos.
     Crawfórd fizera o melhor que lhe fora possível. Não se tratava de nenhuma daquelas casas federais, seguras, mas sem
qualquer identidade, onde os braços das cadeiras iam embranquecendo com a transpiração. Era uma vivenda agradável, recentemente pintada de branco, com hortênsias que floresciam emoldurando as escadas, resultado de mãos cuidadosas e de um certo bom gosto. O quintal descia em declive até à Chesapeake Bay, onde se avistava uma balsa que se encontrava amarrada.
Por detrás das cortinas via-se o pulsar da luz
azul-esverdeada da televisão. Graham sabia que Molly e Willy estavam a ver o desafio de baseball.
O pai de Willy fora um jogador de baseball e por sinal
até bastante bom. Molly conhecera-o no autocarro da escola e casaram-se ainda andavam na universidade.
     Enquanto ele permaneceu na equipa dos Cardinals, vagabundearam por todos os sítios onde se realizavam jogos da Liga do Estado da Florida. Levavam Willy com eles e passaram momentos felizes. Quando deixou de ser um simples suplente, actuou com segurança e eficácia nos seus dois primeiros jogos. Pouco depois começou a sentir dificuldade em engolir. O cirurgião tentou operá-lo, mas havia metástases que o minaram completamente. Morreu cinco meses depois, quando Willy tinha seis anos.
Willy via baseball sempre que podia. Molly via baseball
quando se sentia preocupada.
Graham não tinha chave e teve de bater à porta.
- Eu abro - ouviu-se Willy dizer.
- Espera. - O rosto de Molly apareceu por entre as
cortinas. - Podes abrir.
Willy abriu a porta. No punho fechado, meio oculto pela
perna, empunhava uma matraca.
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     Graham não acreditava nos seus olhos. O miúdo devia tê-la trazido na mala.
Molly pegou no saco que ele trazia.
; Queres café? Há gin mas não é da marca de que tu gostas. Quando ela foi para a cozinha, Willy pediu a Graham para
irem até ao jardim.
     Da varanda das traseiras viam-se as luzes de presença dos barcos ancorados na baía.
- WilI, há alguma coisa que eu precise saber para poder
proteger a mãe?
- Aqui vocês estão os dois perfeitamente em segurança
Willy. Lembras-te do carro que nos seguiu desde o aeroporto, para se certificar de que ninguém nos vigiava? Ninguém conseguirá descobrir onde é que tu e a mãe estão.
- Esse doido quer matar-te, não quer?
     - Não temos ainda a certeza disso. De qualquer modo, não me sentia tranquilo por ele saber a nossa direcção.
- Vais matá-lo?
Graham fechou os olhos por instantes.
- Não. O meu trabalho é simplesmente o de o encontrar.
Vão interná-lo num hospital de doidos para o poderem tratar e impedir que ele ataque mais pessoas.
     - A mãe do Tominy comprou aquele jornal, Will. Dizia que mataste um tipo em Minnesota e que estiveste num hospital para doentes mentais. Nunca ouvi falar disso. É verdade?
É.
     Comecei por falar com a mãe sobre isto, mas depois achei que era melhor perguntar-te a ti directamente.
     - Aprecio a tua franqueza. Não era apenas um hospital de doenças mentais; tratam lá qualquer doença. - A diferença parecia importante. - Estive no pavilhão psiquiátrico. Queres saber tudo por ter casado com a tua mãe?
- Prometi ao meu pai que tomava conta dela e hei-de fazê-lo. Graham sentia que dissera a Willy o suficiente. Era
melhor não lhe dizer de mais.
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As luzes apagaram-se na cozinha. Viu a silhueta vaga de
Molly através da porta de rede e sentiu a importância do seu julgamento. O que acontecesse com Willy teria certamente influência no coração dela.
Era nítido que Willy já não sabia o que é que lhe havia
de perguntar. Graham deu-lhe uma ajuda.
     - O caso do hospital foi depois daquilo que se passou com Hobbs.
- Disparaste contra ele?
- Disparei.
- Como é que aconteceu?
- Para começar, Garrett Hobbs era louco. Atacava
raparigas do liceu e ... matava-as.
- Como?
     Com uma faca; bom, um dia encontrei nas roupas de uma das raparigas um bocadinho de apara de metal. Era o tipo de apara que faz uma máquina de roscar, lembras-te de quando montámos o chuveiro no pátio?
     » Tive de investigar uma quantidade enorme de instaladores de tubagem de vapor, de canalizadores e de outras pessoas. Levou imenso tempo. Hobbs tinha deixado a sua carta de demissão numa obra que eu estava a investigar. Vi-a e achei ... estranho. Já não estava a trabalhar em sítio nenhum e tive de o procurar em casa.
     - Ia a subir as escadas da casa onde Hobbs tinha o apartamento. Um agente fardado ia comigo. Hobbs deve ter-nos visto subir. Ia a meio caminho do lanço de escadas para o seu apartamento quando ele, da porta, nos atirou com a mulher, que veio cair em cima de nós já morta.
- Ele tinha-a morto?
- Tinha. Foi por isso que pedi ao agente que ia comigo
para telefonar para o comando de intervenção especializado neste género de coisas. Mas nessa altura ouvi crianças que gritavam. Quis esperar, mas não fui capaz.
- Entraste no apartamento?
- Entrei. Hobbs segurava uma rapariga diante dele e
dava-lhe golpes com uma faca. Matei-o.
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- A rapariga morreu?
- Não.
- Ficou bem?
Depois de algum tempo, sim. Agora já não tem qualquer
problema.
     Willy digeriu isto lentamente. Vinda de um dos barcos de recreio que se encontravam ancorados, ouvia-se uma música ténue.
     Graham podia poupar Willy à descrição do que se passara, mas não conseguia evitar o reviver mais uma vez todas aquelas cenas.
A Sr a Hobbs no lanço de escadas, caída sobre ele,
esfaqueada tantas vezes. Ver que ela tinha morrido, ouvir os gritos no apartamento, libertar-se dos pequenos dedos tintos de sangue, atirar-se contra a porta antes que ela se feche. Quando consegue entrar, a visão de Hobbs a segurar a própria filha enquanto lhe cortava o pescoço, a miúda que se defendia, tentando proteger a garganta com o queixo, a 38 que o ia desfazendo aos bocados enquanto ele continuava a cortar sem se deixar ir abaixo. Hobbs sentado no chão a gritar e a rapariga num estertor aflitivo. Segurar a rapariga e ver que lhe tinha cortado a traqueia, mas que não lhe tinha atingido as artérias. A filha que olhava para ele com os olhos esgazeados
e o pai sentado no chão e a gritar: «Estás a ver? Estás a ver?», até cair morto.
Foi nessa altura que Graham perdeu a fé na 38.
     - Willy, o caso de Hobbs incomodou-me muito. Compreendes, não conseguia esquecer-me daquilo e revivia a cena continuamente. Fiquei de tal maneira que praticamente não era capaz de pensar em mais nada. Pensava que pudesse talvez ter agido de uma outra maneira. Até que chegou uma altura em que deixei de sentir o que quer que fosse. Não era capaz de comer e deixei de falar às pessoas. Apanhei mesmo uma depressão. Foi nessa altura que o médico me pediu para ir para o hospital, e eu fui. Passado algum tempo já conseguia distanciar-me de tudo aquilo. A filha de Hobbs veio visitar-me. Já estava boa e falámos imenso. Finalmente consegui pôr o problema de lado e voltei ao trabalho.
161
- Quando se mata alguém, mesmo que seja necessário, dá
para se ficar assim doente?
- Willy, é uma das coisas mais terríveis que existem no
mundo.
- Olha, vou dar um salto à cozinha. Queres que te traga
alguma coisa, uma coca? - Willy gostava de fazer coisas a Graham, mas fazia sempre que tudo parecesse casual, como se houvesse outra coisa mais importante que tivesse de fazer. Nada de uma deslocação propositada com essa finalidade ou qualquer coisa no gênero.
- Está bem, uma coca.
A mãe devia vir até cá fora para ver a iluminação.
     Ainda nessa noite, Graham e Molly sentaram-se na cadeira de balouço na varanda das traseiras. Caía uma chuva leve e as luzes dos barcos projectavam halos granulosos no nevoeiro. A brisa que soprava da baía fazia que ficassem com pele de galinha.
Isto ainda é capaz de demorar um bocado, não é? - disse Molly. - Espero que não, mas pode acontecer.
- WilI, a Evelyn disse que me podia tomar conta da loja
esta semana e mais quatro dias da próxima semana. Mas tenho de regressar a Marathon, nem que seja por um dia ou dois, por causa dos vendedores. Podia ficar com a Evelyn e com o Sam. Precisava de ir fazer compras a Atlanta. Tenho de ter tudo preparado para Setembro.
- A Evelyn sabe onde tu estás?


- Só lhe falei em Washington.
- aptimo.
     - É difícil conseguir ter qualquer coisa, não é? É raro conseguir-se, e mais difícil conservar o que se tem. É um estupor de um mundo.


- A quem o dizes.
- Vamos voltar a Sugarloaf, não vamos?
Se Deus quiser.
162
     - Tenta resolver as coisas de modo que isto não demore muito. Não vai demorar, pois não?
- Não.
- Vais sair cedo?
Tinha estado a falar meia hora ao telefone com Crawford.
     - Um bocadinho antes de almoço. Se de facto tens de ir a Marathon, há umas coisas que temos que combinar de manhã. Willy pode ir pescar.
- Ele tinha coisas para te perguntar acerca do outro.
- Eu sei e não o censuro por isso.


- Raios partam esse repórter. Como é que ele se chama?
- Lounds. Freddy Lounds.
     - Tenho a certeza de que o detestas. Não devia ter falado no assunto., Vamos para a cama que eu esfrego-te as costas.
Uma certa dose de ressentimento invadiu por momentos a
mente de Graham. Justificara-se diante de um garoto de onze anos. O Willy disse que estava tudo bem, que compreendia que ele tivesse necessitado de se tratar. Agora era ela que lhe ia esfregar as costas. Vamos para a cama
Quando estiveres debaixo de tensão tenta manter a boca
fechada.
     - Se quiseres meditar um bocadinho deixo-te sozinho disse ela.
Não queria pensar. Não havia qualquer dúvida a esse respeito. - Esfregas-me as costas e eu esfrego-te outra coisa...
disse ele.
- Vamos a isso, parceiro.
O vento arrastara a chuva miúda da baía e às nove da
manhã o solo libertava nuvens de vapor. Os alvos mais distantes na carreira de tiro do departamento do xerife pareciam agitar-se no ar pesado.
O director da carreira de tiro observou com o binóculo
até se ter convencido de que o homem e a mulher no extremo mais distante da linha de fogo estavam a cumprir todas as regras de segurança.
163
As credenciais do Departamento de Justiça que o homem
mostrara quando pediu para usar a carreira de tiro diziam: «Investigador.» Podia ser qualquer coisa. O director não concordava que o ensino de tiro não fosse feito por um instrutor qualificado.
No entanto, tinha de admitir que o federal sabia o que
estava a fazer.
     Estavam só a usar um revólver .22, mas estava a ensinar à mulher tiro de combate no estilo Weaver, o pé esquerdo levemente avançado, o revólver seguro firmemente nas mãos, com uma tensão isométrica nos braços. Disparava contra o alvo de silhueta que se encontrava sete jardas à frente dela. Incansavelmente, tirava a arma da bolsa exterior da carteira a tiracolo. A situação repetiu-se até se chegar a um ponto em que o director da carreira já não podia olhar para aquilo.
Uma alteração no som dos disparos fez que o director
voltasse a pegar no binóculo. Agora usavam protectores de ouvidos e ela servia-se de um revólver atarracado de cano curto. Reconheceu o som de cargas mais leves.
     Conseguia ver a arma que ela agarrava firmemente e interessou-se. Foi-se deslocando ao longo da linha de fogo até que parou a algumas jardas deles.
     Queria examinar a arma, mas não era uma boa altura para interromper. Teve oportunidade de a examinar quando ela parou para retirar as cápsulas vazias e introduzir mais cinco projécteis alinhados numa placa de aço.
     Estranha arma para um federal. Era um Bulldog .44 Special, curto e feio, em que o orifício do cano era simplesmente aterrador. Fora extensivamente modificado por MagNa Port. O cano era ventilado próximo da mira para ajudar a mantê-la baixa no recuo. O percussor era reforçado e o punho era anatómico. Estava convencido de que era especialmente adaptado para ser carregado a alta velocidade. Um raio de uma arma diabólica quando era carregada com aquilo que o federal suspeitava. Tentava imaginar como é que a mulher se aguentaria com aquilo.
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     As munições no balcão que se encontrava por detrás deles apresentavam uma progressão interessante. Primeiro, via-se uma caixa de balas semiocas de carga leve. A seguir, viam-se projécteis normais de ponta endurecida, e por último estava qualquer coisa sobre a qual o director da carreira já ouvira falar, mas que raras vezes vira. Uma fila de projécteis de segurança Glaser. As pontas pareciam-se com borrachas de lápis. A seguir à ponta encontrava-se uma cápsula de cobre contendo carga número doze suspensa em teflon líquido.
     Este projéctil ligeiro fora concebido para se deslocar a tremenda velocidade e esmagar-se no alvo libertando a carga. Na carne os resultados eram devastadores. O director lembrava-se mesmo dos números. Em noventa glasers disparados a distância média, todos os noventa provocaram uma paragem imediata. Em oitenta e nove dos casos a morte foi instantânea. Um homem sobreviveu, o que deixou os médicos admirados. O projéctil Glaser tinha ainda uma vantagem sob o ponto de vista da segurança: não havia ricochetes e não conseguia atravessar uma parede, não correndo, portanto, o risco de matar alguém que se encontrasse na sala ao lado.
     O homem era muito gentil com a mulher, ao mesmo tempo que a ia encorajando, mas parecia sentir-se profundamente triste sobre qualquer coisa.
A mulher disparara carregadores completos e o director
verificava com agrado que aguentava perfeitamente o recuo da arma, e mantinha ambos os olhos abertos e sem pestanejar. É certo que levava cerca de quatro segundos a disparar o primeiro tiro, sacando a arma da bolsa, mas três acertavam no círculo central. Nada mau para uma principiante. Não havia dúvida de que possuía um certo talento.
Já regressara à torre havia algum tempo quando ouviu o
barulho diabólico dos glasers a serem disparados.
Disparava os cinco de rajada. Não se podia dizer que
fosse procedimento standard dos federais.
O director tentava imaginar que raio é que eles teriam
visto na silhueta do alvo que os levasse a que fossem disparados os cinco glasers.
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     Graham regressou à torre para devolver os protectores de ouvidos, tendo deixado a sua aluna sentada num banco, cabeça baixa, os cotovelos assentes nos joelhos.
     O director pensou que ele se devia sentir contente com os resultados que ela tinha obtido e disse-lhe isso mesmo. Ela fizera progressos enormes num único dia. Graham agradeceu-lhe com um ar ausente. A expressão do seu rosto deixou o director confundido. Parecia um homem que tivesse testemunhado uma perda irreparável.
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CAP+TULO 16
O interlocutor, o Peregrino, dissera a Sara que talvez
voltasse a telefonar na tarde seguinte. Na sede do FBI foram tomadas algumas medidas para receber a chamada.
     Quem era o Peregrino? Lecter não -era. Crawfard encarregara-se de se certificar sobre esse ponto. Seria o Peregrino o Dentuças? Era possível, pensou Crawford.
     As secretárias e telefones do gabinete de Crawfard haviam sido mudados durante a noite para um gabinete mais amplo do outro lado do hall.
Graham permanecia à porta de uma cabina à prova de som.
Atrás dele, na cabina, estava o telefone de Crawford. Sara limpara-o Com a secretária e uma mesa adicional ocupadas com o espectrógrafo de impressão de voz, gravadores e calculador de stress e everly Katz sentada na sua cadeira, Sara precisava de encontrar qualquer coisa que fazer.
No grande relógio de parede faltavam dez minutos para o
meio-dia.
     O Dr. Alan Bloom e Crawfard permaneciam junto de Graham. Tanto um como o outro procuravam aparentar um ar despreocupado, com as mãos nos bolsos.
     Um dos técnicos sentara-se em frente de everly Katz tamborilando com os dedos na secretária, até que um franzir de sobrancelhas de Crawford fez que ele parasse.
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A secretária de Crawford estava apinhada com dois novos
telefones, uma linha aberta para o centro de comutação electrónica da Bell System e uma linha directa para o centro de comunicações do FBI.
     - Quanto tempo é necessário para localizar uma chamada? ­perguntou o Dr. Bloom.
     - Com o novo sistema de comutação é muito mais rápido do que se possa pensar - disse Crawford. - Talvez um minuto, se todo o sistema for electrónico, um pouco mais, se for uma central electromagnética.
Crawfórd ergueu a voz para que todos o ouvissem.
     - Se ele chegar a telefonar, tenham cuidado porque vai ser muito rápido. Temos de estar com atenção para que não haja erros. Queres ensaiar de novo, Will?
     - Certo. Quando chegarmos à altura em que eu falo, quero fazer-lhe algumas perguntas, Doutor.
     Bloom chegara depois dos outros. Tinha programada uma conferência em Quântico, ao fim do dia, na Secção de Ciência do Comportamento. Bloom sentiu o cheiro de cordite que exalava a roupa de Graham.
     - Okay - disse Graham. - O telefone toca. O circuito fecha-se imediatamente e começa a busca no Bell System, mas o gerador de tonalidade continua a tocar, de modo que ele não sabe que já estamos em linha. Isso dá-nos cerca de vinte segundos de vantagem. - Apontou para o técnico. - Gerador de tonalidade desligado no final do quarto toque, compreendeu?
O técnico acenou com a cabeça.
- No final do quarto toque.
- A seguir Beverly pega no telefone. A sua voz é
diferente daquela que ele ouviu ontem. Não haverá reconhecimento de voz. Beverly deverá parecer chateada. Ele pergunta por mim. everly diz-lhe: «Tenho de tentar encontrá-lo, importa-se que o deixe em linha?» Pronta para isso, ev? - Graham pensou que era melhor não ensaiarem de novo as falas. A repetição podia fazer que viessem a tornar-se impessoais. - Certo, a linha estará aberta para nós, morta para ele. Estou convencido de que vai
168
passar mais tempo em linha, à espera, do que na realidade a falar.
- Tem a certeza de que não lhe quer dar a música de
fundo? - perguntou o técnico.
- Porra, nem pensar nisso - disse Crawfard.
     - Damos-lhe cerca de vinte segundos de espera em linha e a seguir Beverly volta a falar e diz-lhe: «O Sr. Graham já vem atender o telefone. Vou ligá-lo agora.» A seguir pego eu no telefone. - Graham voltou-se para o Dr. Bloorn. - Como é que o senhor lidaria com ele, Doutor?
- Ele vai esperar que você se mostre céptico e que de
facto tenha dúvidas de que seja ele. No seu lugar demonstrava-lhe uma certa dose de cepticismo delicado. Faria mesmo uma diferenciação nítida entre o aborrecimento das falsas chamadas e o significado, a importância, de uma chamada de uma pessoa real. As chamadas falsas são fáceis de reconhecer porque lhes falta a capacidade de compreender o que se passou, coisas desse gênero.
     » Faça-o dizer qualquer coisa que prove na realidade que é ele. - O Dr. Bloorn olhou para o chão enquanto massajava a nuca. - Você não faz ideia do que é que ele quer. Talvez procure compreensão, talvez tenha uma ideia fixa a seu respeito como seu adversário e tudo não passe de um desafio, veremos. Tente determinar o seu estado de espírito e dê-lhe aquilo de que ele está à procura, um pouco de cada vez. Seria perfeitamente ridículo fazer-lhe um apelo para que nos viesse ajudar, a menos que note que é disso que ele está à espera.
     » Se ele for paranóico vai percebê-lo rapidamente. Nesse caso alinharia em concordar com as suas queixas de que se sente ofendido. Deixe-o desabafar. Se ele continuar a desabafar, talvez se esqueça de há quanto tempo é que está a falar. É tudo o que lhe posso dizer. - Bloom pôs a mão no ombro de Graham e falou-lhe calmamente. - Não se esqueça de que isto não é nenhuma conversa de chacha nem nenhuma treta; pode conseguir levá-lo a fazer o que nós queremos. Esqueça-se dos conselhos e das regras e faça aquilo que lhe parecer que está certo.
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Tinha começado a espera. Meia hora de silêncio era mais do que suficiente.
- Chamada ou não chamada, temos de decidir o que é que
vamos fazer ao sair daqui - disse Crawfard. - Queres tentar?
- Não consigo ver nada melhor - disse Graham.
     - Isso dava-nos duas possibilidades de o apanharmos, uma espera na tua casa em Keys e a caixa postal.
O telefone estava a'tocar.
     Gerador de som ligado. No Bell System começou a busca. Quatro toques. O técnico rodou o comutador e everly pegou no telefone. Sara estava à escuta.
- Gabinete do agente especial Crawfard.
     Sara abanou a cabeça. Conhecia a pessoa, um dos velhos amigos de Crawfard do Departamento de ãlcool, Tabaco e Armas de Fogo. Beverly livrou-se dele rapidamente e interrompeu a busca. Toda a gente no edifício do FBI sabia que era preciso deixar a linha livre.
     Crawford começou a rever mais uma vez os detalhes do assunto da caixa postal. Sentiam-se ao mesmo tempo aborrecidos e tensos. Lloyd Bowman apareceu para lhes mostrar como os pares de números das escrituras se encaixavam na página 100 da brochura A Alegria de Cozinhar. Sara distribuiu café em copos de papel.
O telefone estava a tocar.
     O gerador de som entrou mais uma vez em funcionamento e o Bell System iniciou a busca. Quatro toques. O técnico rodou o comutador. everly pegou no telefone.
- Gabinete do agente especial Crawford.
Sara estava a acenar a cabeça num gesto afirmativo.
Grandes acenos de cabeça.
     Graham foi para a sua cabina e fechou a porta. Conseguia ver os movimentos dos lábios de everly. Premiu o botão «Hold» e ficou a olhar para o ponteiro dos segundos no relógio de parede.
     Graham conseguia distinguir o seu rosto no receptor polido. Duas imagens distorcidas no bocal e no auscultador. A
camisa
170
cheirava a cordite, recordação da carreira de tiro. Não desligues. Meu Deus, fazei que ele não desligue. Passaram-se quarenta segundos. O telefone que estava na sua mesa estremeceu levemente quando tocou. Deixa-o tocar. Mais uma vez. Quarenta e cinco segundos. Agora.
- Fala Will Graham, em que é que posso ajudá-lo?
Um riso em tom baixo. Uma voz abafada:
- Irá saber mais tarde.
- Pode dizer-me por favor quem é que fala?
- A sua secretária não lhe disse?
- Não, meu caro senhor, mas faz-me interromper uma reunião. ...
- Se me disser que não quer falar com o Peregrino, desligo imediatamente. Sim ou não?
     - Sr. Peregrino, se tiver qualquer problema que eu tenha possibilidades de resolver, tenho o maior prazer em falar consigo.
- Tenho a impressão de que o problema é seu, Sr. Graham.
Peço desculpa mas não estou a compreender.
O ponteiro dos segundos mareava quase que uma volta
completa.
Tem sido um rapaz muito ocupado, não tem? - disse o
interlocutor.
     - Demasiado ocupado para continuar ao telefone se não me disser o que é que pretende.
- Os nossos pontos de interesse coincidem: Atlanta e
Birmingham.
- Sabe alguma coisa a esse respeito?
Um riso suave.
- Se sei alguma coisa a esse respeito? Está interessado
no Peregrino? Sim ou não. Se me mentir desligo já.
Graham via Crawfard através do vidro. Tinha um telefone
em cada mão.
- É evidente que sim. Mas está a ver, costumo receber
imensas chamadas e a maior parte delas são de pessoas que dizem que sabem uma data de coisas.
Tinha passado um minuto.
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Crawford pousou um dos telefones e rabiscou qualquer
coisa num pedaço de papel.
- Ficava admirado se soubesse o número de pretendentes
que tenho de atender - disse Graham. - Falo com eles alguns minutos e vejo logo que não têm capacidade até para entender o que é que se está a passar. Não concorda comigo?
     Sara encostou uma folha de papel ao vidro para que Graham conseguisse ler. Dizia: «Cabina telefónica em Chicago, busca em marcha.»
     - Vamos combinar uma coisa, o senhor diz-me qualquer coisa que saiba sobre o Peregrino e talvez eu lhe diga se tem razão ou não - disse a voz abafada.
- Vamos directos ao assunto de que estamos a falar -
disse Graham.
Estamos a falar sobre o Peregrino.
- Como é que eu posso saber se o Sr. Peregrino fez
qualquer coisa em que eu possa estar interessado? Fez?
- Digamos que sim.
- O senhor é o Peregrino?
     - Tenho a impressão de que isso é uma das coisas que não lhe vou dizer.
- É amigo dele?
- Mais ou menos.
     - Então prove-mo. Diga-me qualquer coisa que mostre como o conhece bem.
     O senhor primeiro. Mostre-me primeiro o que é que sabe. ­Um riso nervoso. - Logo que se engane, desligo.
- Está certo, o Sr. Peregrino é dextro.
     - Isso não tem qualquer dificuldade. Passa-se o mesmo com a maior parte das pessoas.
- O Sr. Peregrino não é compreendido.
- Deixe-se de tretas, por favor.
- O Sr. Peregrino é muito forte fisicamente.
- Sim, acho que o pode dizer.
Graham olhou para o relógio. Minuto e meio. Crawford
fez-lhe um gesto de encorajamento.
172
Não lhe digas nada que o faça mudar de opinião.
     O Sr. Peregrino é branco e tem, digamos, cerca de um metro e oitenta de altura. Estou a ver que ainda não me disse nada. Começo a duvidar se o conhece.
- Quer parar de falar?
- Não, mas disse que se tratava de uma troca. E estou a
ver que estou a falar sozinho.,
- Acha que o Sr. Peregrino é doido?


Bloom abanava a cabeça a dizer que não.
     - Acho que alguém que pode ser tão cuidadoso como ele é, não pode ser doido. Acho que é diferente. Muita gente pensa que ele é doido e a única razão que vejo para isso é o facto de ele ainda não ter deixado que se soubesse grande coisa a seu respeito.
     - Descreva exactamente o que é que acha que ele fez à Sr a Leeds e talvez eu lhe diga se está certo ou errado.
- Não me apetece fazer isso.
Adeus.
O coração de Graham deu um salto, mas ainda conseguia
ouvir respirar no outro extremo da linha.


- Não quero falar nisso até que ...
     Graham ouviu a porta da cabina telefónica em Chicago bater ao ser aberta violentamente e o telefone cair fazendo um ruído surdo. Murmúrios de vozes e as pancadas do telefone suspenso do cordão. Toda a gente ouvia os mesmos ruídos nos altifalantes.
- Não se mexa. Nem sequer pestaneje. Ponha as mãos na
nuca e saia lentamente da cabina, de costas. Lentamente. Afaste as mãos, e encoste-as ao vidro.
Graham sentia-se invadir por um alívio agradável.
- Não estou armado, Stan. O meu bilhete de identidade
está no bolso do peito. Isso faz cócegas.
Ouviu-se uma voz alta ao telefone.
- Com quem é que estou a falar?
- Will Graham, FBI.
     - Fala o sargento Stanley RiddIe, Departamento de Polícia de Chicago. - E logo a seguir num tom irritado. - É capaz de fazer o favor de me dizer que raio é que se está a passar?
173
- O senhor é que tem que me dizer. Deteve um homem? - Claro que sim. Freddy Lounds, o repórter. Conheço-o há dez anos ... Toma a tua agenda, Freddy ... Tem alguma acusação contra ele?
O rosto de Graham estava pálido. Crawfard estava
vermelho. O Dr. Bloom observava a rotação das bobinas do gravador.
- Está a ouvir-me?
- Sim, tenho uma acusação contra ele. - A voz de Graham
parecia estrangulada. - Obstrução da justiça. Leve-o e
detenha-o para ser ouvido pelo procurador-geral da República. De repente Lounds estava ao telefone. Falava rápida e
claramente, depois de ter tirado as bolas de algodão de dentro da boca.
- WilI, ouça ...
- Diga o que tiver que dizer ao procurador-geral da
República. O sargento Riddle que venha ao telefone.
- Sei umas coisas ...
- Riddle que venha ao telefone!
A voz de Crawfard apareceu na linha.
- Deixa-me falar a mim, Will.
     Graham desligou com um gesto violento, o que fez que toda a gente que conseguia ouvir os altifalantes desse um salto. Saiu da cabina e abandonou a sala sem olhar para ninguém.
- Lounds, você arranjou um sarilho dos diabos, meu caro
disse Crawfard.
- Quer apanhá-lo ou não? Eu posso ajudá-lo. Deixe-me
falar só um minuto. - Em face do silêncio de Crawford, Lounds procurou apressar-se. - Ouça, você acaba de demonstrar como precisa desesperadamente do Tattler. Antes não tinha lá muito a certeza, mas agora é diferente. E a prova está nessa história do anúncio do Dentuças. Se assim não fosse, você não tinha vindo de peito feito para fisgar esta chamada. óptimo. O Tattler está aqui à sua disposição. Tudo aquilo que você quiser.
- Como é que você descobriu?
- O chefe da secção de anúncios veio falar comigo
Disse-me que o Departamento de Chicago tinha mandado aquele manequim para verificar os anúncios. O vosso rapaz retirou cinco
174
cartas dos anúncios recebidos. Disse que estava a investigar um caso de «fraude postal». Fraude postal uma fava. O chefe da secção de anúncios tirou fotocópias das cartas e dos envelopes antes de os ter entregue ao vosso homem.
» Estive a analisá-las. Sabia que tinha tirado cinco
cartas para poder camuflar aquela que ele queria na realidade. Levou-me um dia ou dois para verificar tudo. A resposta estava no carimbo do envelope do Chesapeake. O número de código postal correspondia ao da zona do Hospital Psiquiátrico Chesapeake. Descobri logo que só podia ter sido o seu amigo de cu cabeludo. Quem mais é que poderia ter sido?
     » No entanto tinha que me certificar. Foi por causa disso que telefonei, para me certificar se saltava em cima do Peregrino com unhas e dentes, e foi o que aconteceu.
- Cometeu um erro enorme, Freddy.
     - Você precisa do Tattler e eu posso pô-lo à sua disposição. Anúncios, editorial, monitorização, correio recebido, qualquer coisa. Basta que me diga. E além disso sou capaz de ser discreto. Pode ter a certeza de que sim. Deixe-me entrar no jogo, Crawford.
- Não há nada onde eu o possa deixar entrar.
     - Okay, então não há qualquer problema se alguém se lembrar de pôr seis anúncios pessoais na próxima edição. Todos destinados ao Sr. Peregrino e assinados todos da mesma maneira.
- E eu espeto-lhe com um processo e uma acusação formal
por obstrução da justiça.
- E tudo isto se pode espalhar para todos os jornais do
país. - Lounds sabia que a conversa dele estava a ser gravada. Já não se importava. - Juro-lhe por Deus que o faço, Crawford. Sou capaz de destruir as suas hipóteses antes de destruir as
minhas.
- Temos a acrescentar a transmissão de uma ameaça como
resposta ao que acabei de lhe dizer.
- Deixe-me ajudá-lo, Jack. Pode crer que sou capaz.
- Vá para a esquadra, Freddy. Agora deixe-me falar com o sargento.
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O Lincoln Versailles de Freddy Lounds cheirava a tónico
capilar e loção para a barba, peúgas e charutos, e o sargento da polícia sentiu-se feliz quando conseguiu sair do carro ao chegarem à esquadra.
     Lounds conhecia o capitão que comandava a esquadra e a maior parte dos agentes. O capitão serviu café a Lounds e telefonou para o gabinete do procurador-geral, para «tentar esclarecer toda aquela merda.»
     Não apareceu nenhum assistente federal por causa de Lounds. Meia hora depois, este recebeu uma chamada telefónica de Crawford no gabinete do comandante da esquadra. Depois disso, estava livre para se poder ir embora. O capitão acompanhou-o ao carro.
     Lounds sentia-se enervado e a sua condução era rápida e incerta, enquanto cruzava o Loop em direcção a este, a caminho do seu apartamento com vista sobre o lago Michigan. Havia várias coisas que ele queria esclarecer nesta história e sabia que era capaz. Dinheiro era uma delas e sabia que havia de vir do jornal. Nas trinta e seis horas a seguir à sua captura ia verificar-se um aumento instantâneo da tiragem. Uma história exclusiva na imprensa diária ia ser um furo jornalístico. Ia ter a satisfação de ver a imprensa regular - o Chicago Tribune, o Los Angeles Times, o santificado Washington Post e o sagrado New York Times correr atrás do seu material com direitos reservados, seguindo as suas instruções e garantindo-lhes os créditos que ele pretendia.
     E depois, ver os correspondentes desses augustos jornais, que tinham o hábito de o olhar de cima, que se recusavam a beber um copo com ele, a roerem-se de inveja.
     Para eles, Lounds era um pária porque seguira princípios diferentes. Se ele tivesse sido um incompetente, um louco sem mais nenhum meio de rendimento, era possível que os veteranos da imprensa regular lhe tivessem perdoado o facto de trabalhar no Tattler, do mesmo modo que se perdoa a um atrasado mental. Mas Lounds era bom. Tinha as qualidades de um bom repórter: inteligência, coragem e uma vista apurada. Tinha uma enorme vitalidade e tinha paciência.
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     Havia contra ele o seu comportamento, o que fazia que fosse detestado pelos directores de notícias, isto para além de ser incapaz de se manter afastado das suas histórias.
     Em Lounds havia a necessidade desesperada de ser notado, o que muitas vezes o fazia cometer erros. Era coxo, feio e de pequena estatura. Tinha dentes de cavalo e os seus olhos de rato tinham o brilho de cuspo no asfalto.
     Trabalhara dez anos na imprensa regular até se ter convencido de que nunca ninguém o mandaria a lado nenhum, nem mesmo à Casa Branca. Verificou que os seus editores se serviriam dele, que o utilizariam até chegar a altura em que não passaria de um boneco rebentado e bêbado, que passaria os seus últimos dias sentado a uma secretária, inútil, caminhando a passos largos para uma cirrose ou para qualquer outra coisa igualmente triste.
     Queriam a informação que ele pudesse obter, mas não queriam'~Freddy. Pagavam-lhe de acordo com o topo da escala, o que não se podia dizer que fosse muito quando tinha de comprar
mulheres. Batiam-lhe nas costas e diziam-lhe que tinha montes de coragem, mas recusavam-se a inscrever o seu nome num dos lugares do parque de estacionamento.
     Uma noite, em 1969, quando se encontrava no escritório a refazer um artigo, Fredlly teve a sua epifania.
Frank Larkin encontrava-se próximo dele, a receber uma
reportagem ao telefone. No jornal onde Freddy trabalhava, receber reportagens ao telefone era o prato forte dos velhos repórteres que aí trabalhavam. Frank Larkin tinha cinquenta e cinco anos, mas parecia que tinha setenta. Os seus olhos pareciam ostras e de meia em meia hora ia ao armário para beber. Do sítio onde se encontrava, Freddy conseguia sentir-lhe o cheiro.
     Larkin levantou-se e arrastou-se até ao intercomunicador, falando num murmúrio gutural com o editor de notícias, uma mulher. Freddy tinha o hábito de ouvir as conversas das outras pessoas.
     Larkin pediu-lhe que mandasse buscar um penso higiénico da máquina que se encontrava no quarto de banho das senhoras. Tinha que os usar no traseiro, que sangrava.
177
Freddy parou de escrever. Tirou o artigo da máquina,
colocou novo papel e escreveu uma carta de demissão.
Uma semana depois estava a trabalhar no Tatteler.
Começou como editor de casos de cancro, com um vencimento que andava próximo do dobro do que ganhava antes. A administração mostrava-se impressionada com a sua conduta.
O Tatteler podia permitir-se pagar-lhe bem porque os
casos de cancro eram extraordinariamente lucrativos.
Um em- cada cinco americanos morria de cancro. Os
parentes dos moribundos, arrasados, fatigados de tanto rezarem, tentavam lutar contra um carcinoma devastador com pancadas nas costas, pudim de banana e anedotas que tinham o gosto amargo do fel, e acolhiam qualquer coisa que lhes trouxesse uma esperança.
Os analistas de mercado demonstravam que um cabeçalho
directo, como «Nova cura para o cancro» ou «Medicamento milagroso para o cancro», aumentava as vendas nos supermercados de qualquer edição do Tatteler em cerca de vinte por cento. Podia verificar-se uma queda de seis pontos nessas vendas quando a história era publicada logo a seguir ao cabeçalho, na primeira página, o que permitia que os clientes a lessem logo no escaparate, enquanto a caixa totalizava o preço das compras.
     Os analistas de mercado chegaram à conclusão de que o ideal era publicar o cabeçalho a cores na primeira página e o artigo nas páginas centrais, o que fazia que fosse muito mais difícil manter o jornal aberto ao mesmo tempo que se conduzia o carro das compras e se manejava a carteira.
     A história standard não devia ter mais de cinco parágrafos, em tom optimista, em letra de corpo dez, diminuindo progressivamente o corpo da letra até referir que a «droga milagrosa» não se encontrava disponível ou que a investigação animal ainda só agora tinha começado.
Freddy ganhou o seu dinheiro com estas histórias e as
histórias venderam montes de exemplares do Tattler.
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     Para aumentar o número de leitores havia ainda os anúncios de venda por correspondência de medalhSes milagrosos e de roupas que curavam. Os fabricantes destes artigos pagavam um prêmio para poderem ter os seus anúncios publicados próximo da história semanal sobre o cancro.
Muitos leitores escreviam para o jornal pedindo mais
informações. Com isto obtinham-se rendimentos adicionais, vendendo os seus nomes a um «evangelizador» da rádio, um sociopata que só sabia gritar e que lhes escrevia a pedir dinheiro, usando envelopes com um carimbo que dizia: «Alguém que você ama morrerá a não ser que ... »
     Freddy Lounds era bom para o Tatteler e o Tattler era bom para ele. Presentemente, após onze anos a trabalhar para o jornal, ganhava razoavelmente. Fazia mais ou menos aquilo que lhe apetecia e gastava o dinheiro divertindo-se. Dentro das suas possibilidades, vivia tão bem quanto lhe era possível.
Da maneira como as coisas estavam a correr, acreditava
que era capaz de aumentar os seus rendimentos com as tiragens, além dos direitos que pudessem surgir por causa de um eventual filme. Tinha ouvido dizer que Hollywood era um lugar excelente para tipos obnóxios e com dinheiro.
     Freddy sentia-se bem. Desceu a rampa em direcção à garagem subterrânea do edifício onde morava e estacionou no seu lugar reservado com um chiar de borracha dos pneus. Ali, na parede, encontrava-se pintado o seu nome em letras de um pé de altura, assinalando o seu local privativo: «Sr. Frederick Lounds.»
     Wendy já tinha chegado - o seu Datsun estava estacionado no lugar a seguir ao seu. óptimo. Tinha vontade de a levar consigo na sua viagem a Washington. Enquanto subia no elevador ia assobiando uma melodia em voga.
     Wendy estava a fazer-lhe as malas. Toda a vida tinha vivido no meio de malas, o que lhe proporcionava sempre bom trabalho.
     Impecável nos seus jeans e camisola estampada, os cabelos castanhos apanhados num rabo de cavalo que lhe caía da nuca,
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podia confundir-se perfeitamente com uma rapariga do campo se não fosse a sua extrema palidez e as suas formas. O aspecto de Wendy era quase uma caricatura da puberdade.
     Olhou para Lounds com olhos de quem já não se surpreende com nada. Viu que ele estava a tremer.
- Andas a trabalhar demasiado, Roscoe. - Gostava de lhe
chamar Roscoe e o que era certo era que a ele lhe agradava, embora não soubesse dizer porquê. - Em que ligação vais, no avião das seis? - Trouxe-lhe uma bebida e tirou de cima da cama um fato de duas peças e a pasta para que ele se pudesse deitar. - Posso levar-te ao aeroporto. Só tenho de ir para o clube depois das seis.
     Wendy City era o bar topless onde ela trabalhava e já não era obrigada a dançar. Lounds tinha sido um dos responsáveis pela situação.
     - Quando me telefonaste parecias a Toupeira Morocco disse ela.
- Quem?
- Sabes perfeitamente quem é, aparece na televisão ao
sábado de manhã, é muito misteriosa e ajuda o Esquilo Agente Secreto. Era o programa que costumávamos ver quando tiveste a constipação ... Hoje conseguiste uma coisa importante, não conseguiste? Não cabes dentro de ti.
- Podes crer que sim. Hoje arrisquei-me e valeu a pena.
Consegui uma oportunidade que deve ser estupenda.
     - Tens tempo para uma soneca antes de arrancares. Estás a ir-te abaixo.
Lounds acendeu um cigarro. Embora já estivesse outro no
cinzeiro, que ardia lentamente.
     - Sabes uma coisa? - disse ela. - Aposto que, se acabasses a bebida e te deitasses, eras capaz de dormir um bocadinho.
     O rosto de Lounds, comprimido como um punho contra a nuca
dela, descontraiu-se por fim, tornou-se de repente flexível, do mesmo modo como um punho fechado se transforma numa mão. As suas tremuras tinham passado. Contou-lhe tudo num murmúrio, com a boca quase que colada ao vale dos seus volumosos seios, enquanto ela, com um dedo, desenhava oitos na sua nuca.
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- Só mostra como tu és inteligente, Roscoe - disse ela.
Mas agora vais dormir. Acordo-te quando forem horas para o avião. Está descansado porque há-de correr tudo bem. Quando tudo tiver acabado havemos de nos divertir à grande. Murmuraram os locais que haviam de visitar. Até que ele adormeceu.
CAPÍTULO  17
     O Dr. Alan Bloom e Jack Crawford sentavam-se em cadeiras de dobrar, a única mobília que tinha deixado no gabinete de Crawfard.
- O bar está vazio, Doutor.
     O Dr. Bloom estudava a face simiesca de Crawford enquanto tentava adivinhar o que é que viria a seguir. Para além das indisposições de Crawfard e da sua mania de tomar Alka-Seltzer, o Dr. Bloom conseguia distinguir nele uma inteligência fria como gelo.
- Onde é que foi Will?
- Foi dar um passeio para se acalmar - disse Crawford.
Odeia Lounds.
- Teve medo de perder Will quando Lecter divulgou o seu
endereço? Pensou que ele pudesse voltar para a sua família?
     - Por momentos fiquei convencido disso. Foi uma coisa que o abalou muito.
- É compreensível - disse Bloom.
- Depois verifiquei que não lhe é possível voltar para
casa, nem Molly e Willy, não há qualquer hipótese sem que o Dentuças esteja afastado do caminho.
- Conhece a Molly?
- Conheço. É estupenda, gosto dela. É evidente que o
desejo dela era ver-me no inferno. Para já tenho de me manter afastado.
- Está convencida de que você se está a servir do Will?
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Crawford olhou para o Dr. Bloom com um olhar astuto.
- Tenho uns assuntos para discutir consigo. São coisas
que temos de verificar em conjunto. Quando é que tem de estar em Quântico?
- Só na terça de manhã. É a única coisa que tenho de
fazer. - O Dr. Bloom era leitor convidado da Secção de Ciência do Comportamento na Academia do FBI.
- Graham gosta de si. Não é capaz de imaginar que você
possa ter algum jogo escondido a respeito dele - disse Crawford. A observação de Bloom de que estava a usar Will tinha-o atingido.
     E não tenho. Nem sequer me daria ao trabalho de tentar ­disse Bloom. - Sou tão honesto com ele como seria com qualquer paciente.
- Exactamente.
- Não, quero ser seu amigo e sou--o na realidade. Jack,
estou habituado a observar por causa da minha especialidade. Lembre-se, no entanto, que, quando você me pediu um estudo sobre ele, eu recusei.
- Foi Petersen, do andar de cima, que pediu o estudo.
- Foi você que o pediu. Não interessa, se alguma vez
tiver de fazer qualquer coisa a Graham, se houver mesmo qualquer coisa que possa beneficiar terapeuticamente outros, fá-lo-ei de uma forma tão impessoal que será totalmente irreconhecível. Se alguma vez fizer qualquer coisa de natureza acadêmica, só será publicada postumamente.
- Depois de si ou depois de Graham?
O Dr. Bloom não respondeu.
     - Uma coisa que eu notei, e sobre a qual sinto uma certa curiosidade: você não é capaz de estar sozinho numa sala com Graham, pois não? Sempre se conseguiu desembaraçar muito bem, mas nunca esteve frente a frente com ele. Qual é a razão disto tudo? Acha que ele é médium, é isso?
     - Não, é um eideteker, tem uma memória visual absolutamente extraordinária, mas não penso que seja médium. Se assim fosse, nunca deixaria que Duke lhe fizesse um teste, embora
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isso possa não ter qualquer significado. Detesta ser examinado e testado, mas passa-se o mesmo comigo.
- Mas ...
     - Will quer pensar nisto como se se tratasse de um simples exercício intelectual e dentro da limitada definição da ciência forense, isso é que é na realidade. É bom nesse campo, mas acho que há pessoas tão boas como ele.
- Não muitas - disse Crawford.
- Além disso tem uma coisa que só se pode classificar
como empatia pura e projecção - disse o Dr. Bloom. - Pode concordar com o seu ponto de vista, ou com o meu, e mesmo talvez com outros pontos de vista que o aterrorizem e que possam deixá-lo doente. É um dom que se torna muito desconfortável, Jack. A percepção é uma ferramenta que pode ser usada nos dois sentidos.
- Por que é que você nunca está sozinho com ele?
- Porque tenho uma certa curiosidade profissional a seu
respeito e era coisa de que ele se apercebia num instante. É muito rápido.
- Se o apanhasse a espreitar era capaz de baixar as
persianas.
     - É uma analogia, desagradável mas não deixa de ser exacta. Já teve a sua vingança, Jack. Vamos ao que interessa. E de uma forma resumida. Não me sinto muito bem.
     - Uma manifestação psicossomática, provavelmente - disse Crawford.
     - Neste momento é um problema com a minha vesícula. O que é que você pretende?
     - Tenho um «médium» que me permite falar com o Dentuças. - O Tattler - disse Bloom.
     - Isso mesmo. Acha que haverá algum meio de o empurrarmos para um caminho autodestrutivo com aquilo que lhe possamos dizer?
- Levá-lo ao suicídio?
- O suicídio calhava-me mesmo bem.
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     - Tenho dúvidas. Em certos casos de doenças mentais isso pode ser possível. Neste caso, tenho dúvidas. Se ele fosse autodestrutivo não era tão cuidadoso, não se protegia tão bem. Se ele fosse um esquizofrénico paranóico clássico, você seria capaz de o influenciar para que ele se tornasse visível. Podia mesmo levá-lo a fazer mal a si próprio. De qualquer modo, não
era capaz de o ajudar. - O suicídio era um inimigo mortal de Bloom.
     - Não, estou convencido de que não - disse Crawford. Acha que conseguíamos enraivecê-lo?
Por que é que quer saber? Para que fim?
- Deixe-me fazer-lhe esta pergunta: era possível
enraivecê-lo e fixar a sua atenção?
- Já está fixado em Graham como seu adversário, e você
sabe disso. Não se disperse. Está decidido a safar o pescoço de Graham, não está?
     - Acho que tenho de o fazer. Ou-é assim ou ele vai meter água no dia 25. Ajude-me.
- Não estou lá muito certo de que você saiba o que está a pedir.
Conselhos, é o que eu estou a pedir.
Não me refiro a mim - disse o Dr. Bloom. - É o que você
está a pedir a Graham. Não quero que Interprete isto mal, eu normalmente não diria uma coisa destas, mas acho que tem de o saber: o que é que você pensa que constitui uma das mais fortes motivações de Wili?
Crawford abanou a cabeça, indicando que não sabia.
- É medo, Jack. O homem tem de se defrontar com uma
quantidade enorme de medo.


- Porque se feriu?
     - Não, não na sua totalidade. O medo surge com a imaginação, é uma penalização, é o preço da imaginação.
Crawfard ficou a olhar para as suas mãos duras cruzadas
sobre o estômago. Corou. Era embaraçoso falar sobre isso.
     - Certo. Não se preocupe por me dizer que ele tem medo. Não sou tão burro como isso, Doutor.


- Nunca pensei que você o fosse, Jack.
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- Nunca o enviaria lá para fora se não fosse capaz de o
proteger. Okay, se não o pudesse proteger a oitenta por cento. Ele não é mau. Não é o melhor, mas é rápido. Ajuda-nos a pescar o Dentuças, Doutor? Já morreu uma data de gente.
     - Só se Graham souber na sua totalidade o risco que tem à sua frente e o assumir voluntariamente. Quero ouvi-lo dizer isso.
- Sou como o senhor, Doutor. Nunca o engano. Ou pelo
menos não o faço mais do que é costume fazermos uns aos outros.
     Crawford encontrou Graham no pequeno gabinete de trabalho que ficava próximo do laboratório de Zeller, onde se tinha instalado e que estava cheio de fotografias e de artigos pessoais das vítimas.
     Crawford esperou até que Graham pousasse o Law Enforcement Bulletin que estava a ler.
     - Deixa-me dar-te uma ideia do que está organizado para o dia 25. - Não precisava de dizer a Graham que o próximo dia 25 seria dia de lua cheia.
- É o dia em que ele vai repetir a gracinha?
- Sim, se tivermos qualquer coisa que corra mal nesse dia.
- É quase certo.
- De ambas as vezes foi num sábado à noite. Birmingham,
28 de Junho, lua cheia, e calhava num sábado à noite. A 26 de Julho, em Atlanta, foi um dia antes da lua cheia, mas também foi num sábado à noite. Desta vez a lua cheia calha numa segunda-feira, 25 de Agosto. Parece que gosta dos fins-de-semana, mas, mesmo assim, estaremos prontos a partir de sexta-feira.
- Prontos? Estaremos prontos?
- Correcto. Sabes como é que vem no manual: a maneira
ideal de investigar um homicídio?
     - Nunca vi nada feito dessa maneira - disse Graham. Isso nunca funciona assim.
     - Não. Praticamente nunca. No entanto seria estupendo se fôssemos capazes de o fazer: mandar um homem. Apenas um. Deixá-lo ir para o local. Está equipado com um transmissor e vai
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falando continuamente. Tem o lugar todo por conta dele pelo tempo que quiser. Só ele ... só tu.
Seguiu-se uma longa pausa.
- Que é que estás a querer dizer-me?
     - A começar a noite de sexta-feira, 22, temos um Grumman Gulfstream em alerta permanente na Base da Força Aérea de Andrews. Consegui-o emprestado do Ministério do Interior. Tem o equipamento básico de laboratório montado. Ficaremos a aguardar: eu, tu, Zeller, Jimmy Price, um fotógrafo e dois elementos da Secção de Interrogatórios. Logo que a chamada chegue, estamos a caminho. Podemos estar em qualquer ponto do Leste ou do Sul numa hora e quinze minutos.
     - E os residentes? Não são obrigados a cooperar. Não vão esperar.
     - Estamos a cobrir todos os chefes de polícia e departamentos de xerifes. Um por um. Estamos a pedir que as ordens sejam transmitidas a todos os despachantes e oficiais de serviço.
Graham abanou a cabeça.
- Tretas. Eles não colaborariam. Nem podiam.
     - O que nós pedimos não é tanto quanto isso. Pedimos que, quando e se chegar um relatório, os primeiros agentes em cena se desloquem para inspeccionar. O pessoal médico vai a seguir e certifica-se de que ninguém ficou vivo. Se assim for, voltam a sair. Barreiras de estradas e interrogatórios, podem fazer como eles quiserem, mas a cena fica selada até que nós cheguemos. Quando nós aparecermos, tu entras. Tens o transmissor. Só falas para nós quando sentires que vale a pena, não faças nada quando vires que não é necessário ou não tem interesse. Leva o tempo que quiseres. A seguir entramos nós.
- As pessoas de lá não vão esperar.
     - Evidentemente que não. Vão mandar alguns elementos dos Homicídios. Mas de qualquer modo, o pedido sempre terá algum efeito. Vai reduzir muito o tráfico no local e vais encontrar as pistas frescas.
     Frescas. Graham inclinou a cabeça para trás, encostando-a à cadeira, e ficou a olhar para o tecto.
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     - Evidentemente - disse Crawfard - que ainda temos treze dias antes desse fim-de-semana.
Bolas, Jack.
- Bolas porquê? - disse Crawford.
- Parece que queres matar-me.
- Não estou a compreender.
- Não finjas. O que tu decidiste foi usar-me como isco
porque não tinhas mais nada. É por causa disso que, antes que faças a pergunta, vais dizer-me exactamente até que ponto vai ser perigoso desta próxima vez. E deixa-te de psicologia barata, que só é boa para ser usada num estupor de um idiota qualquer. Que é que achas que eu diria? Estás preocupado com medo de que já não tenha tomates desde aquilo que aconteceu com o Lecter?
- Não.
     - Não posso censurar-te pelo-facto de teres pensado isso.
Ambos conhecemos gente a quem isso aconteceu. Detesto a ideia de ser obrigado a andar com um colete Kevlar, com a coronha da arma a sair de um dos bolsos. Mas, porra, agora estou metido nisto até aos cabelos. Não podemos ir para casa enquanto ele andar à solta.
- Nunca pensei que o fizesses.
Graham viu que ele era sincero.
- Há mais qualquer coisa, não há?
Crawford não disse nada.
Molly, nem penses. De maneira nenhuma.
Meu Deus, WilI, nem era capaz de te pedir uma coisa dessas.
Graham ficou a olhar para ele por momentos.
     - Oh, pelo amor de Deus, Jack. Decidiste fazer o jogo de Freddy Lounds, não foi? Tu e o Freddy fizeram um acordo.
Crawford ficou a olhar para uma pinta que tinha na
gravata. Por fim ergueu o olhar para Graham.
     - Bem sabes que é a melhor maneira de lhe lançar o anzol. O Dentuças vai passar o Tattler de fio a pavio. Quem mais é que nós temos?
- E tinha de ser Lounds a fazê-lo?
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É ele que trabalha no Tattler.
     Então o programa é mandar umas bocas no Tattler a respeito do Dentuças e depois damos-lhe um tiro. Achas que isto é melhor do que a caixa postal? Não vale a pena responderes a isso, sei que é. Falaste com Bloom a este respeito?
     - Só de passagem. Vamos os dois encontrar-nos com ele. E com Lounds. Vamos desenvolver a operação da caixa postal ao mesmo tempo.
- E a respeito da encenação? Tenho a impressão de que
tenho lhe sugerir qualquer lugar que tenha uma boa vista, ao ar livre. Um lugar qualquer de onde ele se possa aproximar. Não estou a vê-lo como atirador especial. Pode ser que me engane, mas não estou a imaginá-lo com uma espingarda.
- Vamos ter vigias fixos nos pontos elevados.
     Estavam os dois a pensar a mesma coisa. O colete Kevlar conseguia deter os projécteis de nove milímetros do Dentuças e a sua faca, antes que Graham fosse atingido. Não havia qualquer modo de o proteger contra um tiro na cabeça, se um atirador escondido tivesse a oportunidade de disparar.
- Falas tu com o Lounds. Não me apetece fazer isso.
- Ele precisa de te entrevistar, Will - disse Crawford
suavemente. - Tem de te tirar a fotografia.
Bloom tinha avisado Crawford de que este ia ser o ponto
mais difícil.
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CAPÍTULO  18
     Quando chegou a altura, Graham surpreendeu tanto Crawford como Bloom. Parecia ansioso por se encontrar com Lounds e, apesar dos frios olhos azuis, tinha uma expressão afável.


     O facto de se encontrar na sede do FBI tivera um efeito positivo no comportamento de Lounds. Era delicado quando se lembrava de o ser e fazia o seu trabalho rapidamente e em silêncio.
     Graham irritou-se uma única vez: recusou-se frontalmente a que Lounds pudesse ver o diário da,Sr.' Leeds ou qualquer correspondência particular de ambas as famílias.
     Quando a entrevista começou, respondeu às perguntas de Lounds de uma maneira civilizada. Ambos os homens consultaram


notas tiradas na conferência que tinham tido com o Dr. Bloom. As perguntas e as respostas foram muitas vezes reconstruídas.
Alan Bloom estava convencido de que era difícil
esquematizar as coisas até ao mais ínfimo pormenor. Por último resolveu-se a expor simplesmente as suas teorias sobre o Dentuças. Os outros ouviam como estudantes de karate numa aula de Anatomia.
O Dr. Bloom referiu que o comportamento do Dentuças e a
sua carta indicavam um esquema de projecção de ilusSes que o compensavam de sentimentos intoleráveis de inadaptação. O estilhaçar dos espelhos relacionava esses sentimentos com a sua aparência.
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A objecção do assassino ao nome «Dentuças»* era baseada
nas implicações psicológicas do nome. Bloom acreditava que ele tinha um conflito homossexual inconsciente, um medo terrível de ser gay. A opinião de Bloom era reforçada por uma curiosa observação que tinha sido feita na casa dos Leeds: as marcas de dobras e manchas de sangue tapadas indicavam que o Dentuças tinha vestido uns shorts a Charles Leeds depois de ele ter morrido. O Dr. Bloom acreditava que ele tinha feito aquilo para salientar a ausência de interesse que tinha em Leeds.
O psiquiatra falou dos fortes elos de ligação que se
encontram entre os comportamentos agressivos e sexuais de sádicos logo na primeira fase da sua vida.
     Os ataques selvagens contra mulheres, executados na presença das suas famílias, representavam nitidamente ataques a uma figura maternal- Bloom, andando de um lado para o outro, dizendo metade das coisas quase que para ele próprio, classificava o indivíduo como «filho de um pesadelo». Crawfard baixou os olhos, sentindo a compaixão que havia na sua voz.
Na entrevista com Lounds, Graham fez afirmações que
nenhum investigador faria e às quais nenhum jornal daria crédito.
     Especulou dizendo que o Dentuças era feio, impotente com pessoas do sexo oposto, e afirmava falsamente que o assassino tinha molestado sexualmente as suas vítimas masculinas. Graham disse que o Dentuças era a maior anedota que tinha conhecido em toda a sua vida e sem dúvida o resultado de uma relação incestuosa.
     Salientou ser evidente que o Dentuças não era tão inteligente como Hannibal Lecter. Prometeu fornecer ao Tattler mais indicações e pontos de vista sobre o assassino, à medida que lhe ocorressem. Disse mesmo que muitos agentes da lei não concordavam com ele, mas enquanto dirigisse a investigação, o Tattler podia ter a certeza de que teria da parte dele todas as informações disponíveis.
* No original, «Tooth Fairy» [Fada do Dente].
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Lounds tirou uma quantidade enorme de fotografias.
     A fotografia de base tinha sido tirada no «esconderijo de Graham em Washington», um apartamento que ele tinha pedido emprestado até «conseguir esmagar o Dentuças». Era o único lugar onde conseguia «encontrar solidão» na «atmosfera agitada» da investigação.
     A fotografia mostrava Graham em roupão de banho sentado a uma secretária, trabalhando a altas horas da noite. Representava uma «concepção de artista» do Dentuças absolutamente grotesca.
     Atrás dele podia ver-se através da janela parte da cúpula do Capitólio iluminada. Mais importante ainda, no canto
inferior esquerdo da janela, desfocado, mas legível, distinguia-se o anúncio de um motel conhecido do outro lado da rua.
Se quisesse, o Dentuças podia encontrar o apartamento.
     Na sede do FBI, Graham foi fotografado junto a um espectrómetro de massa. Não tinha nada que ver com o caso, mas Lounds achou que dava um certo toque.
     Graham chegou ao ponto de concordar em que lhe tirassem uma fotografia com Lounds, em que este o entrevistava. Tiraram esta fotografia diante dos imensos armeiros da secção de Armas de Fogo e Ferramentas. Lounds empunhava uma automática de nove milímetros do mesmo tipo da arma do Dentuças. Graham apontava para o silenciador de fabrico caseiro. Feito de um pedaço de tubo de antena de televisão.
O Dr. Bloom ficou surpreendido quando viu que, antes de
Crawfard disparar a máquina fotográfica, Graham colocava uma mão no ombro de Lounds num gesto amistoso de camaradagem.
A entrevista e as fotografias deviam ser publicadas no
Tattler a publicar no dia seguinte, segunda-feira, 11 de Agosto. Logo que reuniu todo o material, Lounds partiu para Chicago. Disse que queria ele próprio supervisionar a composição. Combinou encontrar-se com Crawford na terça de tarde a cinco quarteirSes da armadilha.
     A partir de terça-feira, quando o Tatteler se encontrava em todas as bancas, encontravam-se montadas duas armadilhas para o monstro.
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Graham passaria a ir todas as noites à sua «residência
temporária» mostrada na fotografia do Tatteler.
     Na mesma edição, um anúncio pessoal codificado convidava o Dentuças a deslocar-se a uma caixa postal em Annapolis, que passou a estar vigiada durante vinte e quatro horas por dia. Se ele desconfiasse da caixa postal, podia pensar que o esforço para o apanhar tinha sido concentrado aí. A partir daí, Graham passaria a ser um alvo muito mais atraente, raciocinou o FBI.
As autoridades da Florida forneceram uma vigilância
permanente em Sugarloaf Key.
     Havia um ar de descontentamento entre os caçadores - duas operações de primeira grandeza ocupavam mão-de-obra que podia ser utilizada noutros trabalhos, e a presença de Graham todas as noites na armadilha limitava os seus movimentos na área de Washington.
     Embora Crawford. pensasse que esta era a melhor maneira de proceder, o plano era demasiado passivo para o seu gosto. Tinha a sensação de que estavam a brincar com eles próprios na escuridão da lua, com menos de duas semanas antes que ela se erguesse novamente como lua cheia.
     O domingo e a segunda passaram de uma forma curiosamente agitada Os minutos arrastavam-se e as horas parecia que voavam.
     Na segunda-feira de tarde, Spurgen, chefe de instrutores SWAT em Quântico, circundou o bloco de apartamentos. Graham viajava ao seu lado e Crawford seguia no assento de trás.
     - O tráfico de peSes diminuiu cerca das sete e um quarto. É a hora a que toda a gente se prepara para jantar - disse Spurgen. Com um corpo compacto e peludo e o boné de baseball puxado para trás, parecia-se mais com um jogador. - Amanhã a noite, quando atravessar a linha de caminho de ferro da B&O, dê-nos um sinal na banda livre. Tente fazê-lo entre as oito e trinta e as oito e quarenta. - Entrou no parque dos apartamentos. - Esta disposição não é uma maravilha, mas podia ser pior. Amanhã à noite vai estacionar aqui. A partir daí
vamos mudar todas as
193     Tentava imaginar se os velhos e estranhos impulsos serão os vírus com os quais se produz a vacina.
Sim, enganara-se a respeito de Shiloh. Shiloh não está
assombrada - os homens é que estão assombrados.
Shiloh não tem qualquer importância.
412



E dei o meu coração para conhecer a sabedoria, e para
conhecer a fúria e a loucura;
     Apercebi-me de que isso também é humilhação do espírito.
ECLESIASTES.

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